Sobretudo porque as ideias falham a fisiologia
segue o seu ritmo impiedoso. Apesar de ter vivido demasiado em pouco
tempo ainda sou jovem. O órgão vai funcionando. Conheço mulheres,
fazemos aquelas coisas que normalmente fazem um homem e uma mulher
quando chegam a um relativo consenso. Hoje, mais uma vez, fodi sem
vontade mas vim-me na mesma. Há sempre um que tem mais desejo que o
outro. Não acredito que as relações sejam equilibradas. Depois
sigo o meu caminho. Que não é nenhum. É regressar à estaca zero.
A começar tudo outra vez. Vou encontrando alguma coisa que recolho
como se fosse da berma da estrada. Para uns metros mais adiante
afastar do caminho.
E ainda assim não ando totalmente ao Deus dará. Não deixo de
procurar alguém que fale a minha língua. Mesmo que apenas arranhe.
Porque me expresso quase em dialecto. É uma espécie de narcisismo,
é certo. Suponho que nada de bom advirá desse encontro não tão
esperado. Nenhuma mudança importante; provavelmente nem sequer
duradoura. Não penso mudar nem uma vírgula do meu comportamento.
Não quero ouvir falar em… Sou múltiplo, divisível e assim
continuarei. É a única maneira de seguir adiante. Tenho que colocar
todo o meu peso, toda a minha vontade no pouco que faço. Tenho uma
propensão funesta para o imobilismo.
Um dia só restarão no mundo todas essas pessoas
que descem a avenida a pavonear-se. As cafetarias estão cheias de gente a fazer planos para ocupar as
horas seguintes e as horas depois das horas contíguas. Um ligeiro
movimento de alguém desconhecido pode permitir acumular vida.
Dignidade humana - que expressão
colossal, paradoxalmente parece-me um conceito com uma espessura
muito fina, espacial, inumana. Às vezes tenho dores. Começou o
declínio. Essas dores correspondem a momentos de desordem. Porque
perco a noção entre o bem e o mal, e o bem o mal, como devíamos
saber desde o início dos tempos, são fruto da mesma árvore. E até
a vergonha pode ser admirada, quando daqui a muito tempo for
apenas uma recordação que ataque como uma arma de plástico. A
falta de vergonha e o descaramento é que merecem ser abandonados
para sempre, se é que alguma vez foram conhecidas. Acabo a pensar
que alguma
presença de traço psicológico que não augura nada de bom está
muito de acordo com a vivência debaixo deste céu, principalmente
aqui onde
estamos.
Desespero, fixação, desconfiança, lirismo, inconstância,
isolamento, sobretudo farsa. É como comer muitos fritos e ficar
sujeito à doença cardiovascular. Claro que a medicina dos dias que
correm é bem mais prosaica. Não comas mal, não bebas muito, não
fumes nada.
Viver segundo as normas, uma
linguagem impessoal. Não me leva a lado nenhum. Existe sempre uma
série de pessoas prontas a julgarem-te; primeiro pedem-te uma
confissão qualquer, depois tu admites, confessas a primeira coisa de
que te sentes arrependido e que provavelmente não devias ter feito
daquela maneira. Confessas e pensas: Adeus,
acabou, vou para casa.
Mas não te deixam levantar. Pedem mais um minuto mas mentem.
Necessitam
todo o teu tempo.
Querem saber mais. Querem julgar-te até ao mais ínfimo pormenor,
saber todas as circunstâncias, as mais irrelevantes, como se fosses
um criminoso e todos os detalhes servissem para acentuar a pena. Tu
só queres uma série de tarde livres, longe. Porque a redenção
atinge-se sem ajuda de ninguém, sozinho. A solidão é o único que
consegue redimir. E produz bem-estar. É possível respirar com a
cadência própria da ausência de ansiedade.
Dizem que uma mulher com
quem me relacionei de
modo mais próximo durante três meses está a passar por uma
depressão gravíssima.
De facto, ela continua em casa. Eu não sei justificar-me. Não se
trata de tentar acusar-me de ser o autor moral ou algo rebuscado do
género. Deviam olhar para ela, magríssima, brilhante para alguns,
para outros apenas aplicada. Era directora financeira da empresa em
que trabalhei durante grande parte da minha vida. As horas que
trabalhava, a vida que levava. A não-vida, como a minha. Sou
contabilista e tenho trinta e cinco anos. Fui despedido há cerca de
dois, obviamente não consegui arranjar trabalho e vivo na mais
completa das penúrias, fazendo alguns serviços sobre os quais não
faço descontos nem pago impostos. Pensei em mudar de cidade e caso
não encontrasse emprego como contabilista dedicar-me a outra
actividade qualquer. Ainda não tive coragem. Partir seria como a
assunção de uma culpa que me é alheia.
Tudo começou quando devido
a um volume extraordinário de trabalho começamos a trabalhar em
equipa.
Ficávamos no escritório até mais tarde. Algumas vezes acabámos
por ir jantar fora de horas a uma cervejaria próxima. Passávamos o
dia inteiro no escritório à volta com números, tabelas e cálculos
que por força tinham que bater certo. Chegávamos à noite exaustos.
Outros colegas regressavam a casa, para junto da família. Quanto a
nós, bom, em casa ninguém nos esperava. Dava-lhe passagem quando
entrávamos na cervejaria. Ríamo-nos, gostava de vê-la rir. Podia
ser ela como podia ser outra. Éramos colegas de trabalho, ela era
minha chefe e eu não me queria meter em confusões das quais não
saberia como podia sair. Não faço ideia se alguma vez lhe peguei
nas mãos ou lhe toquei no ombro. O que é certo é que ela se
apaixonou por mim e eu simplesmente não podia partilhar o afecto.
Ela nunca me interessou dessa
maneira e
eu nunca demonstrei o contrário, nem actos, nem palavras, nem
qualquer espécie de teatro insinuante a que as pessoas cedem quando
querem seduzir e parecer almas gémeas. Matávamos a fome com um bife
e uma cerveja. Obrigava a rir-me a mim próprio depois de um dia
cansativo, mais um dia de cão. Não nego que aqueles finais do dia
me rejuvenesciam alguns minutos, talvez dez minutos. Talvez os
cabelos brancos me dessem alguma trégua. Talvez alguma ruga
considerasse adiar o seu engelhamento. Rejuvenescia dez minutos, o
dia seguinte envelhecia doze horas. O saldo era francamente negativo.
Obviamente, ela tinha algum poder dentro da
empresa e infundiu uma pena tal em tudo e todos que me acabaram por
acusar de brincar com os sentimentos
e outro tipo de grosserias que me dão vontade de vomitar.
Despediram-me sem apelo. Quando se trabalha com números é fácil
forjar uma soma mal calculada, uma subtracção penalizadora para a
casa. Alegaram alguma classe de prática
continuada e mandaram-me pensar nas
minhas acções. O mais certo foi ter
sido precisamente ela a dar a ordem. Não importa. Telefonei-lhe uma
única vez, desejei-lhe as melhoras, pedi-lhe desculpa por algum
equívoco gerado. Ela disse-me que no que aos sentimentos
concerne o tempo tudo curava e que
ficaria bem. Mas continua em casa, passado todo este tempo, sem se
relacionar, com a vida suspensa, metida na cama. Passámos um único
fim-de-semana e, fora do ambiente do trabalho, foi a única vez. Nem
viajámos juntos nem nada disso. Cada um no seu carro. Dormimos em
quartos independentes. Em andares diferentes. Não subimos ao mesmo
tempo. Ela subiu primeiro e eu fiquei a beber um wiskey com água ao
balcão do bar. Na manhã seguinte, domingo, assistimos à partida de
uma corrida dessas solidárias, como a corrida contra o cancro ou
algo do género. Provavelmente ela contou-me algum episódio familiar
triste e eu passei-lhe as costas da mão pela cara. Beijei-a na face,
os lábios como uma brisa que só intuímos porque estamos muito
atentos e predispostos a sentir um ou dois arrepios de pele. E depois
fomos parar ao fundo do poço. Nisso estamos juntos.
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