Não
recebia visitas a diário mas surpreendia-me com a quantidade de
vezes que a campainha tocava. Pedi à empregada, que inicialmente só
vinha 3 manhãs por semana, que ampliasse os horários a todas as
manhãs com os sábados incluídos. Quando algum amigo fazia menção
de me visitar procurava que se ajustasse ao dia em que a minha
ajuda, a boa da Encarnação, estivesse por casa. Se não existisse
essa coincidência, com algum apuro, tentava que a visita fosse
adiantada ou protelada. Quando recebia visitas preferia que a
Encarnação estivesse presente. Primeiro porque a sua presença
fortificava o ambiente, conferia-lhe um tónico realmente aprazível.
Depois porque se esbatiam as minhas reservas relativas a um certo
quebranto do meu aconchego. Todas as visitas que me fizeram acabaram
por ser por mim muito estimadas. Não alimentava demasiado as
conversas, limitava-me a algumas perguntas de carácter geral e a
ouvir as respostas, não me estendia em considerações.
Interessava-me, como sempre me interessei, pelo que acontecia nos
círculos em que me movia. Dado o meu estado de convalescença,
recuperação a ritmo satisfatório segundo os médicos, as conversas
versavam com frequência sobre maleitas; mas também passares de uso
doméstico, de previsões confirmadas. Algum ziguezague profissional
de um conhecido em comum e a maioria das vezes o regresso a rumos
interrompidos que a proximidade do fim da vida activa permitia. E a
minha curiosidade estava demarcada pelas boas notícias. As visitas
foram de uma generosidade que só posso sublinhar e agradecer. Mas
houve uma excepção. E foi suficiente para interromper aquelas
semanas de agradável monotonia.
José
L. visitou-me uma segunda-feira de manhã. Telefonou-me já estava no
bairro e chegou com aquela alegria pícara de quem quer alentar com
um sem fim de mundanidades. Na verdade, tinha passado todo o fim de
semana sozinho e ainda estava meio aturdido; alguém que fazia as
honras da casa sem grande necessidade de réplica deixava-me tempo
para recuperar da minha reclusão acidental. Mas José L., dei-me
conta, vinha com uma fisgada. Tinha alguns conhecimentos na Câmara
Municipal e soube, contou, que se falava na sugestão do meu nome
para uma rua na zona de Alfragide, uma dessas urbanizações novas.
Deliberação em tempo record e aprovação por unanimidade,
prosseguia entretido. A novidade não me supôs nenhuma reacção e o
modo como José L. a transmitiu reforçou o meu desinteresse.
Considerei a notícia como totalmente alheia. Tão alheia quanto era a
minha própria morte.
Poucas
semanas depois tive ordem de restabelecer a minha rotina. Significava
que em vez de procurar não me aborrecer unicamente dentro de casa,
agora também precisava fazê-lo fora de casa. Ampliava de novo o
meu campo de batalha. Encarnação tratava das compras. Não queria
desde logo voltar aos compromissos sociais. Não querendo vaguear sem
destino uma ideia fixa se impôs: visitar Alfragide. Procurei
urbanizações de construção recente. Demorei a encontrar ruas sem
nome e na realidade apenas encontrei uma única. A rua estava
urbanizada apenas de um dos lados (com dois edifícios). Do outro
lado existia um pequeno precipício que abria a vista sobre grandes
armazéns de venda especializada. A rua tinha passeios com lancis
que delimitavam a estrada e aquilo que viria a ser uma zona com
relvado, de momento por semear, que amontoava terra, restos de
cimento, cabos de electricidade e tubos PVC de distintos tamanhos. Os
edifícios não estavam totalmente ocupados. Viam-se caixas dos
contadores, com muitos por instalar. Uma notória demora, talvez
deliberada, nos trabalhos finais. Do lado do precipício encontrei um
pequeno pilar de cimento com uma pedra ligeiramente inclinada, como a
tribuna donde os maestros seguem a partitura. Que se visse, a rua não
tinha nome. Dirigi-me ao carro e abri a porta. Ouvi outro carro
aproximar-se atrás de mim; adiantou-me e seguiu para o edifício mais
próximo. O portão de uma garagem começou a abrir-se. Hesitei em
perguntar aos ocupantes do carro se sabiam o nome da rua em que
viviam ou há quanto tempo morrera a figura que lhe dava nome.
Hesitei; senti de volta a testa a latejar. Há quantos anos morreu. A
garagem tragou o carro com a escuridão própria dos buracos. Haviam
muitos lugares fora e o sol de Outubro ainda aquecia quem se
predispunha a deixar-se estar. Ainda não morreu, podia ter escutado.
Sem comentários:
Enviar um comentário