domingo, 18 de agosto de 2013

2 - Reach For The Dead


Sobretudo porque as ideias falham a fisiologia segue o seu ritmo impiedoso. Apesar de ter vivido demasiado em pouco tempo ainda sou jovem. O órgão vai funcionando. Conheço mulheres, fazemos aquelas coisas que normalmente fazem um homem e uma mulher quando chegam a um relativo consenso. Hoje, mais uma vez, fodi sem vontade mas vim-me na mesma. Há sempre um que tem mais desejo que o outro. Não acredito que as relações sejam equilibradas. Depois sigo o meu caminho. Que não é nenhum. É regressar à estaca zero. A começar tudo outra vez. Vou encontrando alguma coisa que recolho como se fosse da berma da estrada. Para uns metros mais adiante afastar do caminho. E ainda assim não ando totalmente ao Deus dará. Não deixo de procurar alguém que fale a minha língua. Mesmo que apenas arranhe. Porque me expresso quase em dialecto. É uma espécie de narcisismo, é certo. Suponho que nada de bom advirá desse encontro não tão esperado. Nenhuma mudança importante; provavelmente nem sequer duradoura. Não penso mudar nem uma vírgula do meu comportamento. Não quero ouvir falar em… Sou múltiplo, divisível e assim continuarei. É a única maneira de seguir adiante. Tenho que colocar todo o meu peso, toda a minha vontade no pouco que faço. Tenho uma propensão funesta para o imobilismo.
 
Um dia só restarão no mundo todas essas pessoas que descem a avenida a pavonear-se. As cafetarias estão cheias de gente a fazer planos para ocupar as horas seguintes e as horas depois das horas contíguas. Um ligeiro movimento de alguém desconhecido pode permitir acumular vida. Dignidade humana - que expressão colossal, paradoxalmente parece-me um conceito com uma espessura muito fina, espacial, inumana. Às vezes tenho dores. Começou o declínio. Essas dores correspondem a momentos de desordem. Porque perco a noção entre o bem e o mal, e o bem o mal, como devíamos saber desde o início dos tempos, são fruto da mesma árvore. E até a vergonha pode ser admirada, quando daqui a muito tempo for apenas uma recordação que ataque como uma arma de plástico. A falta de vergonha e o descaramento é que merecem ser abandonados para sempre, se é que alguma vez foram conhecidas. Acabo a pensar que alguma presença de traço psicológico que não augura nada de bom está muito de acordo com a vivência debaixo deste céu, principalmente aqui onde estamos. Desespero, fixação, desconfiança, lirismo, inconstância, isolamento, sobretudo farsa. É como comer muitos fritos e ficar sujeito à doença cardiovascular. Claro que a medicina dos dias que correm é bem mais prosaica. Não comas mal, não bebas muito, não fumes nada.
 
Viver segundo as normas, uma linguagem impessoal. Não me leva a lado nenhum. Existe sempre uma série de pessoas prontas a julgarem-te; primeiro pedem-te uma confissão qualquer, depois tu admites, confessas a primeira coisa de que te sentes arrependido e que provavelmente não devias ter feito daquela maneira. Confessas e pensas: Adeus, acabou, vou para casa. Mas não te deixam levantar. Pedem mais um minuto mas mentem. Necessitam todo o teu tempo. Querem saber mais. Querem julgar-te até ao mais ínfimo pormenor, saber todas as circunstâncias, as mais irrelevantes, como se fosses um criminoso e todos os detalhes servissem para acentuar a pena. Tu só queres uma série de tarde livres, longe. Porque a redenção atinge-se sem ajuda de ninguém, sozinho. A solidão é o único que consegue redimir. E produz bem-estar. É possível respirar com a cadência própria da ausência de ansiedade.
 
Dizem que uma mulher com quem me relacionei de modo mais próximo durante três meses está a passar por uma depressão gravíssima. De facto, ela continua em casa. Eu não sei justificar-me. Não se trata de tentar acusar-me de ser o autor moral ou algo rebuscado do género. Deviam olhar para ela, magríssima, brilhante para alguns, para outros apenas aplicada. Era directora financeira da empresa em que trabalhei durante grande parte da minha vida. As horas que trabalhava, a vida que levava. A não-vida, como a minha. Sou contabilista e tenho trinta e cinco anos. Fui despedido há cerca de dois, obviamente não consegui arranjar trabalho e vivo na mais completa das penúrias, fazendo alguns serviços sobre os quais não faço descontos nem pago impostos. Pensei em mudar de cidade e caso não encontrasse emprego como contabilista dedicar-me a outra actividade qualquer. Ainda não tive coragem. Partir seria como a assunção de uma culpa que me é alheia.
 
Tudo começou quando devido a um volume extraordinário de trabalho começamos a trabalhar em equipa. Ficávamos no escritório até mais tarde. Algumas vezes acabámos por ir jantar fora de horas a uma cervejaria próxima. Passávamos o dia inteiro no escritório à volta com números, tabelas e cálculos que por força tinham que bater certo. Chegávamos à noite exaustos. Outros colegas regressavam a casa, para junto da família. Quanto a nós, bom, em casa ninguém nos esperava. Dava-lhe passagem quando entrávamos na cervejaria. Ríamo-nos, gostava de vê-la rir. Podia ser ela como podia ser outra. Éramos colegas de trabalho, ela era minha chefe e eu não me queria meter em confusões das quais não saberia como podia sair. Não faço ideia se alguma vez lhe peguei nas mãos ou lhe toquei no ombro. O que é certo é que ela se apaixonou por mim e eu simplesmente não podia partilhar o afecto. Ela nunca me interessou dessa maneira e eu nunca demonstrei o contrário, nem actos, nem palavras, nem qualquer espécie de teatro insinuante a que as pessoas cedem quando querem seduzir e parecer almas gémeas. Matávamos a fome com um bife e uma cerveja. Obrigava a rir-me a mim próprio depois de um dia cansativo, mais um dia de cão. Não nego que aqueles finais do dia me rejuvenesciam alguns minutos, talvez dez minutos. Talvez os cabelos brancos me dessem alguma trégua. Talvez alguma ruga considerasse adiar o seu engelhamento. Rejuvenescia dez minutos, o dia seguinte envelhecia doze horas. O saldo era francamente negativo.
 
Obviamente, ela tinha algum poder dentro da empresa e infundiu uma pena tal em tudo e todos que me acabaram por acusar de brincar com os sentimentos e outro tipo de grosserias que me dão vontade de vomitar. Despediram-me sem apelo. Quando se trabalha com números é fácil forjar uma soma mal calculada, uma subtracção penalizadora para a casa. Alegaram alguma classe de prática continuada e mandaram-me pensar nas minhas acções. O mais certo foi ter sido precisamente ela a dar a ordem. Não importa. Telefonei-lhe uma única vez, desejei-lhe as melhoras, pedi-lhe desculpa por algum equívoco gerado. Ela disse-me que no que aos sentimentos concerne o tempo tudo curava e que ficaria bem. Mas continua em casa, passado todo este tempo, sem se relacionar, com a vida suspensa, metida na cama. Passámos um único fim-de-semana e, fora do ambiente do trabalho, foi a única vez. Nem viajámos juntos nem nada disso. Cada um no seu carro. Dormimos em quartos independentes. Em andares diferentes. Não subimos ao mesmo tempo. Ela subiu primeiro e eu fiquei a beber um wiskey com água ao balcão do bar. Na manhã seguinte, domingo, assistimos à partida de uma corrida dessas solidárias, como a corrida contra o cancro ou algo do género. Provavelmente ela contou-me algum episódio familiar triste e eu passei-lhe as costas da mão pela cara. Beijei-a na face, os lábios como uma brisa que só intuímos porque estamos muito atentos e predispostos a sentir um ou dois arrepios de pele. E depois fomos parar ao fundo do poço. Nisso estamos juntos.

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