quarta-feira, 2 de outubro de 2013

3 – White Cyclosa



Não recebia visitas a diário mas surpreendia-me com a quantidade de vezes que a campainha tocava. Pedi à empregada, que inicialmente só vinha 3 manhãs por semana, que ampliasse os horários a todas as manhãs com os sábados incluídos. Quando algum amigo fazia menção de me visitar procurava que se ajustasse ao dia em que a minha ajuda, a boa da Encarnação, estivesse por casa. Se não existisse essa coincidência, com algum apuro, tentava que a visita fosse adiantada ou protelada. Quando recebia visitas preferia que a Encarnação estivesse presente. Primeiro porque a sua presença fortificava o ambiente, conferia-lhe um tónico realmente aprazível. Depois porque se esbatiam as minhas reservas relativas a um certo quebranto do meu aconchego. Todas as visitas que me fizeram acabaram por ser por mim muito estimadas. Não alimentava demasiado as conversas, limitava-me a algumas perguntas de carácter geral e a ouvir as respostas, não me estendia em considerações. Interessava-me, como sempre me interessei, pelo que acontecia nos círculos em que me movia. Dado o meu estado de convalescença, recuperação a ritmo satisfatório segundo os médicos, as conversas versavam com frequência sobre maleitas; mas também passares de uso doméstico, de previsões confirmadas. Algum ziguezague profissional de um conhecido em comum e a maioria das vezes o regresso a rumos interrompidos que a proximidade do fim da vida activa permitia. E a minha curiosidade estava demarcada pelas boas notícias. As visitas foram de uma generosidade que só posso sublinhar e agradecer. Mas houve uma excepção. E foi suficiente para interromper aquelas semanas de agradável monotonia.

José L. visitou-me uma segunda-feira de manhã. Telefonou-me já estava no bairro e chegou com aquela alegria pícara de quem quer alentar com um sem fim de mundanidades. Na verdade, tinha passado todo o fim de semana sozinho e ainda estava meio aturdido; alguém que fazia as honras da casa sem grande necessidade de réplica deixava-me tempo para recuperar da minha reclusão acidental. Mas José L., dei-me conta, vinha com uma fisgada. Tinha alguns conhecimentos na Câmara Municipal e soube, contou, que se falava na sugestão do meu nome para uma rua na zona de Alfragide, uma dessas urbanizações novas. Deliberação em tempo record e aprovação por unanimidade, prosseguia entretido. A novidade não me supôs nenhuma reacção e o modo como José L. a transmitiu reforçou o meu desinteresse. Considerei a notícia como totalmente alheia. Tão alheia quanto era a minha própria morte.

Poucas semanas depois tive ordem de restabelecer a minha rotina. Significava que em vez de procurar não me aborrecer unicamente dentro de casa, agora também precisava fazê-lo fora de casa. Ampliava de novo o meu campo de batalha. Encarnação tratava das compras. Não queria desde logo voltar aos compromissos sociais. Não querendo vaguear sem destino uma ideia fixa se impôs: visitar Alfragide. Procurei urbanizações de construção recente. Demorei a encontrar ruas sem nome e na realidade apenas encontrei uma única. A rua estava urbanizada apenas de um dos lados (com dois edifícios). Do outro lado existia um pequeno precipício que abria a vista sobre grandes armazéns de venda especializada. A rua tinha passeios com lancis que delimitavam a estrada e aquilo que viria a ser uma zona com relvado, de momento por semear, que amontoava terra, restos de cimento, cabos de electricidade e tubos PVC de distintos tamanhos. Os edifícios não estavam totalmente ocupados. Viam-se caixas dos contadores, com muitos por instalar. Uma notória demora, talvez deliberada, nos trabalhos finais. Do lado do precipício encontrei um pequeno pilar de cimento com uma pedra ligeiramente inclinada, como a tribuna donde os maestros seguem a partitura. Que se visse, a rua não tinha nome. Dirigi-me ao carro e abri a porta. Ouvi outro carro aproximar-se atrás de mim; adiantou-me e seguiu para o edifício mais próximo. O portão de uma garagem começou a abrir-se. Hesitei em perguntar aos ocupantes do carro se sabiam o nome da rua em que viviam ou há quanto tempo morrera a figura que lhe dava nome. Hesitei; senti de volta a testa a latejar. Há quantos anos morreu. A garagem tragou o carro com a escuridão própria dos buracos. Haviam muitos lugares fora e o sol de Outubro ainda aquecia quem se predispunha a deixar-se estar. Ainda não morreu, podia ter escutado.

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