segunda-feira, 16 de maio de 2011

Humilhação

O rapaz parecia uma estátua a quem estivessem a pentear uma peruca. Mas o barbeiro não parava de mandá-lo sossegar. Não era uma criança impaciente. Conseguia perfeitamente manter-se quieto. Mesmo assim, os vinte minutos demoravam horas. Soltando algum dichote, o barbeiro parava frequentemente para se dirigir à mãe e à avó, que aguardavam conversando com outras mães e avós e talvez tias ou irmãs mais velhas. Depois abalançava-se de novo sobre o rapaz e inclinando-se sobre a orelha direita repetia o não te mexas, está sossegado. Sentia as palavras transformarem-se em vapor, um sopro quente. Pedaço de sádico. Não bastava já o embaraço do corte de cabelo à Beatle.

Que tormento… que repulsa ao lembrar-se daquelas palavras sussurradas, ditas entre dentes nos momentos em que a mãe e a avó estavam distraídas, ou quando um eléctrico passava na rua, ferro com ferro, um ruído que fazia estremecer as tesouras fora de serviço em cima do balcão. O tom era vagamente ameaçador mas ele sabia que não corria perigo, não estava sozinho. O pente e a tesoura começaram a parecer-lhe instrumentos de suplício. O rapaz desconhecia a existência de certo tipo de pervertidos, ou malvados, categorias em que talvez se incluísse o barbeiro. Sem esforço, representando aos oito anos a suposta força de vontade adulta, não se movia nem um pouco. Orgulhava-se do facto e não percebia a censura a um comportamento exemplar. Preso ao cadeirão, a cabeça ligeiramente inclinada para o chão e ainda assim o sacana, o muito sacana, na primeira oportunidade repreendia-o sem razão. Era vítima de uma espécie de injustiça. O barbeiro, que usava uma longa bata lilás, arreliava-o para que fizesse birra. Confuso, acabou a sentir-se culpado. Uma culpa sem objecto. Culpado de quê?

Não mais voltaram, a mãe e a avó perceberam as queixas e acederam de pronto ao pedido. Já adolescente, assimilou o episódio como a primeira humilhação vivida. E pensou que devia tomar sem qualquer espécie de demora as rédeas do seu destino. Estava disposto a calcar no chão quem se interpusesse entre si e a sua dignidade, tão precocemente ferida. Recordava o barbeiro sacudindo as almofadas contra o cadeirão, despedindo-se molemente, então até à próxima, e sentia-se mais incomodado com o sorriso de vampiro do baeta do que com os cabelos soltos que lhe farpeavam o pescoço.

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