quarta-feira, 18 de maio de 2011

Antes que me esqueça (4): Marrakech

Consegui regressar. Marrakech é uma emboscada para quem, como eu, nunca tem nada a perder. É fácil fazer amigos em Marrakech. Também existem muitos oportunistas, que não conhecem civilização nem lugar, é preciso aprender a esquivá-los. Um jogo que se aprende depressa. Depois, caminhando medina adentro, cai-se na armadilha, fica-se encostado a uma ombreira a olhar para a rua, assim durante horas, deixar-se hipnotizar pelo movimento que não cessa, espantar-se com os carregadores. Um arrebate leva a apontar a câmara para uma marroquina que cruza, e ela, num movimento que é a própria essência da beleza, desvia a cara para a parede e só fica registado um monte de tecido andante.

O escritor espanhol Juan Goytisolo foi um dos apanhados na cilada da praça Djemaa el-Fna. Reside na cidade e foi o principal impulsionador da candidatura da praça a património imaterial da humanidade.

É preciso diferenciar rapidamente o trigo do joio e confiar nas próprias impressões. Em Marrakech percebemos se somos equilibrados ou paranóicos. M., velho senhor de vestes brancas e chapéu, mostra-me continuamente as mãos amarelas, os dedos deformados, resultado do trabalho a curtir peles e couros. Tenta seduzir-me, coloca o braço ao lado do meu e diz que somos iguais na cor de pele. Cada especiaria com o seu aroma. No dia anterior um berbere do sul de Marrocos, Zagora, porta privilegiada do deserto do Sahara, deixava-me um pequeno tratado de sociologia rebelde, que as pessoas dali não gostam do deserto, só se interessam por motas e futebol e sonham com conhecer Barcelona. Sonhar está bem. Que duas ou três dunas nos arredores das cidades não é uma viagem ao deserto. Dromedários, céu estrelado, areia e calhaus, a insignificância, é isso que ele quer dizer. Na escola não ensinam idiomas e a única maneira de aprender línguas é falando com os turistas. Não sou turista, apetece-me dizer-lhe, sou só alguém que desde sempre se identificou com a insignificância, com o eclipse debaixo do céu.

Houellebecq diria que o Islão é uma religião excessivamente monoteísta e tautológica e que o deserto é o prado perfeito para o aparecimento de ideias loucas, terroristas. O terrorismo é um problema político e não religioso. A convivência do Islão com regimes cada vez menos autoritários diminuiria a presença de fantasias que deixam, à sua passagem, a destruição e a morte que nenhum povo merece. É por isso que todas as manifestações pró-reformistas, as mais pacíficas aconteceram precisamente em Marrocos, não são, em absoluto, desdenháveis nem deviam ser olhadas com cinismo ou oportunismo pelo Ocidente.

Finalmente: la bonne couscousá almoçada com vista para um pátio onde alguém enxagua três copos e um bule. Alguém prepara um chá de menta que ficará para depois da oração.

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