domingo, 29 de maio de 2011

Fome

Domingo. Chegavam visitas e eu fazia o almoço. Gosto de ser eu a cozinhar, sobretudo porque vou limpando à medida que vou sujando. Se enches tudo de cascas, desperdícios, derrames, migalhas e gordura, no final tens o dobro do trabalho. Preocupo-me em fazer o menor estrago possível. Ainda assim passei bastante tempo na cozinha. Mas não foi nesse dia que a minha vida se interrompeu. A minha vida já estava interrompida. Não me recordo do momento preciso. Deve ter sido por alturas do primeiro assado. Quando começava a juntar os ingredientes sentia-me terrivelmente esfomeado. Tinha um forno tão bom quanto outro qualquer. O truque era não ter pressa. Se tivesse pressa, puxava a grelha e constatava que o lombo continuava cru. Vigiava a temperatura, 180 graus, para que a carne não ficasse chamuscada por fora e crua por dentro. A experiência acumulava-se e a superfície não enganava, avermelhada, afogueada, as pontas parecerem já suculentas. A primeira vez que me queimei, prometi: «se tiver cuidado, não voltará a acontecer». Não é possível extremar o cuidado ao ponto de nunca te queimares. Se estás na cozinha tens que saber que isso é uma probabilidade. Se possível ter uma pomada anti-queimaduras à mão. A mesma consciência quotidiana que não esmorece recordava-me que não devia ficar demasiado tempo a olhar para um naco de carne. E depois? De cada vez que abria a porta do forno gostava do calor que me bafejava a cara.

(Reescrito.)

2 comentários:

  1. Também vou limpando à medida que vou sujando, mas é precisamente porque não gosto de cozinhar -- se pelo caminho se instalar o caos, mais desanimada fico com o durante e o depois.

    (olá!)

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