domingo, 27 de março de 2011

Falar a mesma língua

Conheci o poeta J. A. no meio de uma manifestação dessas que agora se convocam por meios remotos. Primeiro surpreendi-me ao vê-lo. Por mais bem-intencionado que fosse o objectivo da aglomeração sabia que as multidões não o entusiasmavam. Passada a surpresa, pareceu-me uma boa ocasião para tentar falar com ele. Procurei a melhor posição no meio do grupo e tentei mantê-la, separavam-nos poucos metros, eu seguia atrás. Ele avançava sozinho e não me dei conta se participava nas palavras de ordem, que fazem parte deste tipo de protestos públicos.

A manifestação acabou e todos começavam a dispersar. O poeta J. A. deu uma volta sobre si próprio, de mãos nos bolsos, e fazia menção de tomar uma direcção. Mudou de ideias no segundo seguinte para imobilizar-se e dar um passo escolhendo um ponto cardeal distinto do momento anterior, enfim, não podendo estar perdido, estava pelo menos bastante indeciso no rumo a seguir. Foi aquele comportamento errático que me deu o empurrão final para chegar a abordá-lo.

É dispensável contar como cheguei a iniciar conversa com ele. Certo foi que nos sentamos na escadaria e ficamos até praticamente ser noitinha. Era eu que o acompanhava – uma sorte, mas podia ser qualquer outra pessoa, naquele momento, ele teria contado igualmente as mesmas coisas, a mesma história de busca do autêntico e do genuíno. Lembrei-me imediatamente de um conto do escritor albanês Ismaíl Kadaré que versava sobre a relação de amor entre um poeta octogenário e uma mulher jovem. O poeta tinha sido convenientemente transferido pelo Partido para uma pequena cidade de província onde se supunha que o efeito nefasto da nostalgia presente nos poemas não causaria tantos estragos à energia, à doutrina, ao optimismo inculcado, ao realismo socialista, que se vivia na «capital». Eram super-abundantes as palavras contra a nostalgia.

O poeta J.A., longe de ser octogenário, contava-me a história de um encontro que queria repetir. Procurava-o incessantemente, mesmo nos locais mais insuspeitos, como naquela manifestação que terminara. Foi difícil voltar a ter um dia de sossego. Resumia as palavras anteriores que eu, sem grande experiência, pressentia absolutamente apaixonadas: «Foi o espanto que me deixou paralisado e não queria acreditar no que ouvia. Regulava-me por outras fantasias que não passavam de embustes e que agora encontro odiosos. Depois disso raras vezes a vi. E nunca mais encontrei ninguém que falasse a mesma língua que eu.»

Ismaíl Kadaré, (La historia de la Liga Albanesa de Escritores) Frente al espejo de una mujer. Alianza Literaria, 2002.

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