segunda-feira, 4 de abril de 2011

Nuvens

O caso é este: ela estava deitada na relva a estudar um manual de computadores enquanto ele estava sentado na mesa de madeira. Lia um livro de contos de Alan Silitoe. Nesse volume aparece O quadro do barco de pesca, que é provavelmente o conto mais triste jamais escrito. Nesse relato, o tempo passa e não acontece nada. E isso é o mais triste que pode existir, o tempo passar e não acontecer nada. Espero que saibam aquilo a que me estou a referir quando falo em não acontecer nada. Se sabem, ainda não estão totalmente perdidos e, nesse caso, alegro-me a quantidade devida.

Inícios da Primavera. O sol estava fraco e as nuvens brancas abundavam. Porque tinha frio, ou porque não estava protegida o suficiente, cada vez que uma nuvem se interpunha ela perguntava-lhe se a sombra demorava muito. Ele olhava para o céu e fazia cálculos. O tamanho da nuvem, a espessura e as hipóteses dos raios solares passarem através. Depois fixava-se nas nuvens seguintes, empurradas pela brisa noroeste, uma fila de nuvens brancas e todas diferentes. O pior era que mudavam de forma conforme se percebiam mais afastadas ou mais próximas. Isso complicava qualquer previsão. Ela não se chateava quando ele falhava. Era compreensiva. Mas cada vez que ficava à sombra perguntava pelo sol. E não levantava os olhos do livro de computadores.

Ele seguia com as estimativas. Depois da passagem de várias nuvens começou a acertar mais vezes. Não que de um momento para o outro se tornasse assim especialista em meteorologia, ou melhor ainda, em sombras e claros. Mas depois da passagem de umas quantas nuvens pela frente do sol alguém que esteja atento e sobretudo que não se importa de ficar com dor de pescoço, por força, terá que perceber quanto tempo vai durar uma sombra. E uma sombra, a sério, não dura a vida toda, nem sequer a tarde toda, ainda quem em determinados momentos isso pareça, tendamos a desistir de estar ao ar livre e voltemos para casa.

Chegou um momento da tarde em que acabou a marcha das nuvens. O vento noroeste amainou, como diria um pescador, e deixou de empurrá-las desde o cabo finisterra. Ele podia ler sossegado. Quando desviasse os olhos do livro não seria para concentrar-se no céu. Podia simplesmente olhar-lhe para os pés a balançar no ar. Disse, Logo que o sol descubra já não voltará a esconder-se, não restam nuvens para interromper o calor. Ela levantou-se: não há dúvida, estava de pé. Abriu a palma da mão e friccionou-a lentamente contra o peito dele. Não sei porque o fez. Talvez o anúncio do fim das nuvens a tenha deixado feliz.

Ele regressou a casa e deitou-se. Queria saborear a tarde primaveril acabada de viver. Já se sabe, os apaixonados quando não estão juntos preferem estar sozinhos com as suas coisas etéreas. Espero que também saibam isto. E se não sabem tentem recordar-se. De certeza que alguma vez passaram por algo parecido. Onde quero chegar é que as horas passam depressa quando estamos meio entorpecidos e ele adormeceu com a mão direita chegada ao peito, sob o peso do seu próprio corpo sedentário. Dormiu muitas horas e talvez – admito eu – tivesse problemas de circulação.

Pela manhã acordou e foi à casa de banho. Molhou um pouco o chão mas atribuiu a falta de pontaria à sonolência. Olhou-se ao espelho e pareceu-lhe que uma chusma de bascos lhe havia dado uma carga de porrada. Por pouco escorregava ao sair da banheira. Sentou-me à mesa da cozinha e auscultou os barulhos do próprio organismo.

O relato acaba aqui. Ninguém se apaixona sabendo que lhe terão que amputar a mão. Ele esperava que o facto de ser maneta não esmorecesse o amor que ela sentisse ou pudesse vir a sentir por ele. Afinal ela era uma pessoa compreensiva.

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