quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Inventário das noites ao relento

Edward Hopper. Night in the park, 1921

As noites ao relento não são noites difíceis. As noites atribuladas são passadas às voltas na cama, sem conseguir adormecer, afligido por insónias cruéis. As noites ao relento são tranquilas e apaziguadoras. A angústia surge quando começa a amanhecer. Amanhece e já não entendes a utilidade das noites em branco e é nesse momento que passas mal e quase te arrependes. Saliente-se que dormir é algo insignificante nas noites passadas ao ar livre. Tentativa de esgotar as noites que já passei ao relento.

>> Na avenida principal de uma capital de província. O típico banco verde composto por quatro tábuas. Duas horizontais e duas verticais. Podia ser a única pessoa na rua num raio de muitos metros. Um carro patrulha passou por mim várias vezes durante toda a noite. Essa noite levantei-me da cama precisamente porque não conseguia dormir. Tinha 14 anos e combinara com uns amigos às sete da manhã na farmácia. Combinávamos ir à caça, de bicicleta, e levaríamos as três espingardas de pressão de ar que entre todos conseguimos reunir. Depois de entrar na cama, logo ao início da noite, julguei que o verdadeiro objectivo dos rapazes era assassinar-me. Por muito rocambolesco que pareça. E fiquei obcecado com a ideia ao ponto de prever detalhadamente o modo como terminaria assassinado pelos meus falsos amigos. Não aguentei mais e levantei-me. Vesti-me e saí. Isso foi tudo. Escolhi a minha avenida preferida e sentei-me num dos bancos. Isso foi tudo. E a verdade é que nunca tive real intenção de andar aos tiros aos pássaros.

>> Tempo depois do episódio falhado da caça e do pretenso assassinato. Num outro banco, desta vez de uma zona afastada do centro de Faro. Simplesmente não tinha onde passar a noite. Dois pescadores meteram conversa comigo e disse-lhes que tinha perdido o último comboio. Que fazia horas enquanto não chegava a hora do primeiro comboio da manhã. Com um tom de voz execrável e um riso de quem ao arrepio das medidas legais já pescou petingas, um deles perguntou-me se tinha frio, Não tens frio, trazes pouca roupa, Não sinto frio, mas se tiverem filhas em casa gostava de conhecê-las; digam-lhes que estou sozinho e que me venham fazer companhia. Eles não gostaram da resposta e tentaram agarrar-me. Corri durante o resto da noite, ou isso me pareceu, porque parei de correr quando já amanhecia e era hora de apanhar o primeiro comboio que passava.

>> Mais tempo passado, talvez no verão seguinte, quase dormia ao relento na Covilhã. Com um amigo. Salvou-nos a amabilidade do chefe de estação que nos deixou dormir num compartimento de uma carruagem de primeira classe. Estava tão entusiasmado com o facto de passar a noite numa estação de caminhos-de-ferro que quase não descansei. Passeei entre a gare, as carruagens estacionadas num dos extremos da estação, e o encruzilhado das linhas que cheiravam a óleo queimado. Os galos começaram a cantar e desejei que o tempo parasse de uma vez por todas.

>> Cumpri 18 anos. Já não tinha porque passar as noites exactamente sob o céu. Dormi algumas vezes dentro do carro, às vezes ainda durmo. Nunca se dorme perfeitamente no interior do carro. Acorda-se muitas vezes. Não deixam de ser noites ao relento. Algumas vezes dormi no carro porque estava bêbado, já sabem, acordei sempre com a cara que mereci. Não é bom sinal quando acordas e o primeiro espelho a que te miras é o da pala que serve para tapar o sol quando vais a conduzir.

>> Por falar em carros, o dela estava estacionado numa das ruas perto do Bairro Alto e só tinha passado um mês desde a rotura. Mais tarde chamei-lhe o Grande Favor. Mas na altura queria saber o que fazia, com quem, como estava. Meti-me num multibanco ao lado do carro estacionado. Saí várias vezes porque tinha vergonha que alguém entrasse e me visse ali sentado no chão. Ela regressou ao carro muito tarde e eu, em vez de ficar atrás do vidro do multibanco enquanto a observava, apareci e não disse uma palavra. Suponho que tentei afastar qualquer expressão da minha cara. Como uma ideia de fantasma. Acho que foi nesse momento que ela perdeu todas as dúvidas, se alguma restava, da urgência que havia em cortar todas as ligações comigo. Depois sentei-me num banco do jardim do Príncipe Real e ri-me muito, ri-me até amanhecer e ri-me como louco, não conseguia parar, novos ataques de riso quando me lembrava da cara estupefacta dela. Os pássaros começaram a trinar nas árvores centenárias do jardim e aos primeiros raios de sol a loucura eclipsou-se e já nada tinha graça. O problema estava em que nenhum táxi me podia levar para onde ainda fosse noite e onde não caminhassem as primeiras pessoas da manhã.

>> Uma vez estava a ouvir a Antena 1, um daqueles programas nocturnos em que as pessoas telefonam para o locutor. Não me lembro exactamente porquê mas uma das chamadas começou a deprimir-me. Não me lembro do tema de conversa. Mas lembro-me que o ouvinte falou durante muito tempo e o locutor só dizia sim juntando algumas exclamações guturais. Levantei-me da cama e voltei a vestir-me. Nessa altura tínhamos um cão. Fui buscar a trela e saímos os dois. Pus-me de cócoras e coloquei-lhe a trela. Afaguei-lhe o peito e disse, Vamos correr um pouco, não te preocupes, de certeza que me canso primeiro que tu, depois, como fazia sempre, soprei-lhe para o nariz e ele lambeu-se. Fomos quase até Belém e no regresso desejei estar sozinho e poder apanhar um autocarro. Amanhecia quando entrámos no prédio, os dois com a língua de fora.

>> Dormi ao relento com uma amiga. Numa quinta da Costa Alentejana, sobre a relva. Os dois enroscados. A casa estava cheia e decidimos que aquela era a melhor escolha. Demos um breve beijo de boas noites e ela adormeceu. No céu estavam todas as estrelas que se podem observar desde a Terra, não parecia faltar nenhuma, e estavam suspensas no azul nocturno mais brilhante que jamais vira. A luz do farol do cabo sardão passava a um ritmo exemplar. De manhã estava muito nevoeiro e despertei com a cara no meio do peito dela. Abri os olhos e tornei a fechá-los. E fiquei ali, imóvel e a desejar adormecer outra vez.