domingo, 30 de janeiro de 2011

Vida anterior


Desci as escadas em correria. Saltei alguns degraus dois a dois. O impacto da porta a fechar-se atrás de mim pareceu prevenir-me de que a partir daquele momento já não era bem-vindo.
As ruas estavam cobertas por um manto de folhas. Não havia vento e as folhas compunham uma camada uniforme. Estava de rastos. Não queria sequer caminhar. Pensei que o único que poderia afastar o eco das palavras ouvidas seria aquele tipo de trabalho físico, continuado e repetitivo, que lentamente vai absorvendo as forças e sugando a energia, chegando-se ao final do dia sem conseguir dar atenção a mais nada que não seja proporcionar descanso ao corpo. Desejei estar incumbido da limpeza de três ou quatro quarteirões. Varrer os passeios, limpar os canteiros, juntar vários montes de folhas, distribuí-los a cada 20 metros e depois recolhê-los para uma carrinha de caixa aberta do ayuntamiento. Materializar a inutilidade quando o motorista arrancasse e as folhas voassem. Esse era o meu estado de ânimo. Uma sensação de inutilidade completa. Podia esforçar-me que no final o resultado era o mesmo: como se não tivesse agido, como se estivesse parado todo o tempo.

Uma vez fiz-lhe uma espécie de declaração final, Por vontade própria é impossível deixar-te, e realmente era, naquele momento só queria estar com ela. Aí estava uma declaração eloquente. Que procurava ter um efeito, influência no ouvinte.
O tempo passou e as histórias de amor acabaram. Não foi uma decisão consciente mas todo o meu comportamento ulterior derivava dessa recusa. Acabava a vida anterior.

>> Dormi todo o dia e acordei às oito da noite. Cozinhei dois bifes de vaca com molho de cerveja. Depois comi uma tangerina no terraço. Fiquei com vontade de mandar as cascas por cima do muro que delimitava o terraço seguinte. Mas o acto de enviar cada uma das cascas por sobre o muro do terraço seria considerado simplesmente má vizinhança, pouca educação, sempre alguma espécie de grosseria. Nunca ninguém pensaria no que na realidade significava: um gesto contra o enfático.
Fumei um cigarro à porta do terraço, que dava para cozinha, e perguntei-me pelos corvos desaparecidos. Habitualmente grasnavam desde os ramos do pinheiro. Mandei a ponta do cigarro para o terraço dos vizinhos e formulei aquela pergunta elementar, Se gostava que me fizessem o mesmo, concluí que se o fizessem seria por falta de urbanidade, não existe muita gente com capacidade para discursos mínimos, epígrafes contra o enfático e o solene. Acabei por considerar todos estes sinais indiferentes.
Agora já nada disso tinha importância. O que me ocupava era tomar duche, escolher a roupa, vestir-me, perfumar-me, recolher as chaves do carro, o isqueiro, a carteira e o telemóvel. Saí e fui directo a um bar com uma carta onde anunciavam, parecia-me, perto de mil cocktails. Pedi dois Jonh Collins e tomei logo um. Depois fiquei sentado ao balcão a ler o El Cultural, revista que sai à sexta-feira com o El Mundo, onde apareciam dois artigos sobre o próximo livro do escritor chileno Roberto Bolaño. Uma noite ela leu  em voz alta um conto incluído no Llamadas telefónicas ou no Putas asesinas, não me lembro ao certo, e no final do conto decidiu que não gostava da escrita, um mero encadear leviano de frases que esbarravam na superfície das coisas. Vidas utilitárias ainda que corajosas. Um desfilar de situações protagonizadas por personagens sem medo, é certo, mas também sem rumo certo. Uma imaginação colossal e um movimento constante. Figuras que coincidem num mesmo ponto e logo divergem. Sem ocasião para a contemplação ou para a reflexão. Ela preferia Guy de Maupassant ou Katherine Mansfield. E não deixava de ter razão. Mas eu retiro sempre alguma coisa de positivo de gente que joga tudo de uma vez. Sobretudo agora aqui onde estou, consciente da minha deriva, não me posso dar ao luxo de ignorar um autor como Bolaño. O último título do chileno chama-se Los sinsabores del verdadero policía. Um dos críticos, depois de deixar claras as qualidades incomuns, a ousadia e a liberdade dos escritos de Bolaño, pontuava que não se tratava, como pretendia a edição, de um romance ou mesmo de um romance inacabado. Tratava-se de um conjunto de materiais em distinto estado de evolução recolhidos simplesmente para que nada de Bolaño ficasse por publicar. O crítico não gostava de armários perfeitos com gavetas etiquetadas. E Bolaño também não. Escrevia muitas vezes a partir do meio e interrompia-se quando entrevia uma ideia em movimento num caminho paralelo. E é também só isso que agora preciso. Como os miúdos que subiam aos eléctricos em movimento. É preciso muita destreza para esquivar obstáculos. Ou aproveitar a boleia de outros, transitórios e acidentais. Esperar a primeira desatenção como oportunidade. E deixar a minha vida fragmentada no plano do objecto acabado.