domingo, 6 de fevereiro de 2011

Cinco andares

Larry Finck. Homage to Otto Dix.

A mesa estava encostada à janela e ele estava sentado de costas debruçado sobre dois cadernos. Escrevia. Vestia uma camisa branca e um pulôver cinzento, desses sem mangas, entrei sem bater porque a porta estava entreaberta. O apartamento era espaçoso mas consistia apenas em dois espaços diferenciados: a casa de banho e a sala, que também fazia de quarto e cozinha. Havia pinturas de homens semi-nus. Sentei-me na cama e saltitei, como se o colchão fosse elástico.
>> Esperaste-me Samuel? Quanto tempo passou enquanto esperavas? Deves ter perdido a noção do tempo. Nunca te importou esperar. Nunca te importou fazer esperar. Sempre arranjas entreténs. Tu e os teus manhosos jogos mentais. Podias ter-me ligado. Não apareci. Mas não ligaste. Nada te importa. Já me acusaste de passar o tempo a escrever. Mas escrevo para ser uma pessoa normal. Para não me esquecer que sou uma pessoa normal, igual às outras, apesar de andar contigo. É uma ideia que acarinho, escrever para ser normal. És maldoso. Tanto desdém pelas coisas. Dizes que sou uma dessas pessoas que tem horror a estar sozinho, o medo da solidão, o temor de não conseguir viver uma história de amor em condições. E dizes que esse é o egoísmo primordial. Apaixonar-se pela ideia de gostar. Que mal existe em querer alguém? E tu, Samuel Filipe, mereces alguma dedicação? Tu não amas ninguém. Tu e os teus hábeis jogos mentais. Tu e o teu maldito deslumbramento com o pior e com o mais rasteiro. Realismo sujo. Os teus estudos do improviso arruínam-te. Precisas de tudo isso para viver? Passas noites atrás de noites fora de casa, por onde andas? Sempre pelos piores antros, suponho. Não imagino as coisas que contas a todas essas pessoas que vais encontrando, como as atrais? Mulheres, homens. A mim enganaste-me. Perdoei-te mas enganaste-me. Aguardaste-me, estavas à hora marcada, esperavas-me realmente? Não esperaste por mim pois não? Nem com essa ilusão posso ficar. Sai daqui. E não voltes nunca mais.
Desci os cinco andares. No quinto andar só havia aquela água-furtada da qual era expulso. Ainda meio aturdido, agarrei-me ao corrimão e desci devagar. No quarto andar estava um cão a dormitar no tapete. Afaguei-lhe a cabeça mas ele não abanou a cauda. O terceiro andar cheirava a um perfume de mulher que me pareceu familiar. Noutras circunstâncias podia bater à porta para ver que tipo de pessoa abria. No segundo andar cruzei-me com uma velha que perguntou se eram minhas as sapatilhas que estavam no passeio, caídas. Respondi que já não vivia ali. No primeiro andar havia um cheiro exagerado a algo cozinhado e senti-me ainda mais agoniado. Cheguei ao rés-do-chão e ocorreu-me que não tinha dito absolutamente nada em minha defesa. Mas não queria voltar a subir os cinco andares. Talvez se o prédio tivesse elevador.