segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Quarto de hotel

Decidi que precisava de uma ideia sacarina para parar de escrever contos carnívoros como Luto/Pornokopia e Cadeia animal. Escrever esse tipo de texto era como vomitar-me em cima os restos do jantar. Considerei a hipótese de concentrar o meu pensamento em planos futuros com a mulher de quem gostava e que, com inteligência, só raramente respondia às minhas chamadas. Mas rapidamente cheguei à conclusão que não podia usar terceiros, ou terceiras, como forma de açucarar a minha tendência para personagens que vagueavam no meio de depósitos de combustível enquanto resolviam se continuavam a caminhar à chuva ou se procuravam um abrigo.
Evidentemente, era traiçoeira a ideia da musa inspiradora. Não havia ninguém a quem dar a mão. Entrei no carro e conduzi até à praça da constituição. Fumei duas ganzas enquanto apreciava o prédio sem número. Na minha memória o edifício era bastante mais bonito. Algumas janelas estavam podres e havia humidade nas paredes. Amaldiçoei-me por iludir a verdade de forma tão gratuita. Fumei uma terceira ganza. Quando encarava a realidade, ou a recordação, ou a ficção, não me importava de aplicar um olhar concebido e chegado desde o interior contraditório de um jardim do Éden. Mas não aguentava suavizar nenhum quadro. Qualquer cenário tinha um conflito inerente. Sem conflito não existia vida.
Na praça da constituição já não fazia nada. Maldisse a câmara de vigilância que espiava da esquina. Voltei ao carro e decidi passar o fim-de-semana num hotel. Conduzi até ao centro da cidade e escolhi o hotel com o aspecto mais classe média que pude encontrar. Estacionei e recolhi alguns pertences soltos nos assentos do carro. Cheguei à recepção e disse ao empregado que ficaria duas noites. Que desejava não ser incomodado. No quarto despi-me. Regulei o aquecimento no máximo e deitei-me em cima dos lençóis. Cheiravam a detergente. Ao contrário do costumeiro, adormeci quase instantaneamente. Sonhei a noite toda. Sonhei com um quarto branco, paredes brancas, brancas as portas interiores das janelas, cortinados brancos, tapetes brancos, roupa de cama branca, detergente em pó branco espalhado pelo chão. Um quarto neutro, sem história, sem qualidades, sem adjectivos. Um quarto que camuflava a vida mesma. Sonhei que a música substituía todas as derivas, intelectuais, literárias, amorosas, e que saltava em cima de uma cama que não se partia.