domingo, 16 de janeiro de 2011

Circo

Quando era guarda-nocturno fui escalado para fazer vigilância num circo. Sobretudo acautelar o material de luz, som e imagem que estava montado. Cheguei por volta da meia-noite e os técnicos partiram de seguida. Dei uma volta completa por trás das bancadas. Testei a lona em vários pontos. A verdade é que era bastante fácil alcançar o interior da tenda. Fi-lo e calculei-o e mais por rotina que por preocupação real com os holofotes, câmaras, microfones e demais meios necessários para a transmissão televisiva.
Estava muito frio, era véspera de Natal, trazia na mochila meia dúzia de cervejas de lata. Regulei a intensidade dos focos até conseguir uma iluminação mínima. Coloquei uma cadeira no centro da arena. Sentei-me ao contrário. Cruzei os braços e apoiei-os nas costas da cadeira. De costas para a entrada e voltado para as bancadas, mantive-me naquela postura. Não era totalmente confortável e não corria o risco de adormecer. Bebia cerveja a sorvos breves. Ouviam-se os ruídos dos animais nas jaulas.
Quase de imediato senti que algo se aproximava nas minhas costas. Passos que se detiveram ao fim de poucos segundos. E uma voz grave começou a escutar-se, uma voz chegada do fim ou do início dos tempos, o que cada um achar mais longínquo.
>> Tudo o que fazes é um balão. Que se enche e despeja incessantemente. Mas eu não fujo à regra e a minha visão pessoal baseia-se simplesmente na relação que mantenho com o meu domador. Tolero-o. Ele não é demasiado disciplinador e eu não sou muito teimoso. Dedico-me ao que forçosamente estou destinado. Às vezes penso que bastava abrir a boca e mastigar-lhe um pouco a cabeça. Talvez o fizesse no meio de uma actuação. Mas não tenho vocação de protagonista. E não quero correr o risco de ser abatido. Cada espécie, por mais domesticada que esteja, ou civilizada que tenha sido, nunca perde os instintos que lhe cabem, os instintos com que nasce. Nunca corri atrás de gazelas. Mas a filogenia repete-se. E fora deste ambiente não descobriria muito mais do que encontrei até aqui. A filogenia repete-se. Este circo é um micro cosmos. Sou mais um elemento da companhia e, pela minha própria natureza, encaixo-me sem esforço.
>> Tenho uma visão muito prática. Passo todo o tempo perto da civilização, de terra em terra, e durante a noite posso ler algum livro. Essa é uma das vantagens. O último, da autoria de Bernard Quiriny, intitula-se Contos Carnívoros. Escolhi-o porque gostei do título. O prefácio foi escrito por Enrique Vila-Matas que em vez de ter feito uma introdução cheia de elogios ao novel escritor se posiciona ao lado de Quiriny e escreve outro conto que versa sobre a tentativa gorada de escrever uma História Geral do Vazio. Ou seja, um escritor como Vila-Matas situa-se no mesmo plano que um recém-chegado, ainda que de qualidades imediatamente reconhecíveis. Quanto ao tema desse prólogo, não é imprescindível escrever uma História Geral do Vazio, seria talvez um catálogo de banalidades. Escrevemo-la nós todos os dias e nunca nos aborrecemos. É aliás com um prazer desinteressado que o fazemos.
>> Para mim é importante rodear-me de alguma humanidade. Cada um vive conforme a sua condição. Não me parece que exista uma pauta a seguir. Tanto melhor se as coisas correm bem. Três vezes por dia um tratador lança-me nacos de carne para dentro da jaula. Às vezes estou a dormir e só dou conta mais tarde, quando o pedaço de carne já está carregado de moscas. Leio durante grande parte da noite. Não perguntes como arranjo os livros ou onde aprendi a ler. Pergunta-te que conclusões ficam das leituras que faço. A maioria das vezes é puro entretenimento, para descansar das crianças aos gritos ou do êxtase do público quando atravesso o arco em chamas. Outras vezes ensaio alguma rebeldia. Sei que estou preso. São momentos em que o meu rugido é mais selvagem. Mas tudo o que fazes é um balão. Que se enche e esvazia continuamente. Não imagino que esteja mais preso que alguém noutros contextos. Nasci no circo. Isto pode soar-te ridículo.
>> Não adormeças. Nessa posição podes cair e bater com a cabeça. Ficar amnésico. Esqueceres quem és. Parar de rever-te na vida actual ou deixar de ser guarda-nocturno. Não sei se para ti seria um desastre perderes a memória. Que nada disto de afecte. Gosto de organizar pequenos inventários de ausências. No entanto, mesmo depois de notar essas faltas, não penso agir em conformidade com outra decisão que não seja continuar aqui. Estou bem. E não dou excessiva importância ao palco que piso. Fazer parte do espectáculo torna-me de certo modo invisível. Logo que saio do túnel e dou uma volta pela arena o público julga que assiste a alguma mostra de raça e surpreende-se com o meu porte, que encontra nobre, mas na realidade estou apenas a esticar as pernas, tolhidas por passar o dia recostado contra a parede da jaula.

A voz calou-se mas não olhei para trás. Esperei para ver o que acontecia. Como não acontecia nada levantei-me lentamente. Na entrada, a lona, às riscas vermelhas e brancas, abria-se num triângulo. A manhã despontava e a luz provocou-me tonturas. Baixei os olhos e vi um monte de latas de cerveja por cima da serradura. Levava várias horas a beber. Enquanto olhava para as bancadas, que mais tarde seriam ocupadas por pessoas com expectativas de diversão, urinei para cima das latas, a serradura empapava o líquido, e nesse momento não percebi qual a dificuldade em traçar uma teoria geral do vazio.