domingo, 19 de dezembro de 2010

Embrulho

Numa época em que não recebia muitas visitas a campainha tocou. Apesar da hora não dei importância. Tocou uma segunda vez. Continuei a ignorar. A persistência nem sempre me faz mudar de ideias. Soou uma terceira vez. Levantei-me e abri a porta lá em baixo. Durante um bocado não se passou nada. Depois bateram-me à porta e fui abrir. Encontrei-me a mim próprio no corredor. Carregava um volume debaixo do braço. Não me admirei por ver-me fora, estando dentro. Sabia que também podia ser eu. Estava penteado e tinha a barba cuidadosamente por fazer. Deixei-me entrar e fechei a porta. O que restava do dia ocupei-o a arrumar uns papéis. Rasgava os que estavam escritos dos dois lados.

Só me lembrei do volume, um pacote quadrado com papel de embrulho, na manhã seguinte. Desfiz o embrulho e abri a caixa. Havia um espelho. Um espelho daqueles que ampliam as imperfeições, provavelmente para poder corrigi-las, um espelho dos que usam as mulheres para se maquilharem e ficarem mais bonitas. Vi-me ao espelho e só simplesmente a minha cara, aumentada, um grande sinal castanho na face esquerda. E fiquei ali com o espelho na mão, o espelho que agora me pertencia. E nesse momento não cantava Dolly Parton. E a campainha voltou à mudez habitual.