quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Nunca vou ao cinema

E depois durmo com os olhos meio abertos. A respiração difícil, mas regular. Ainda cheguei a fazer um requerimento para que o turno da noite fosse fixo. Apanho o último autocarro. Esses últimos transportes nocturnos que circundam a cidade e ligam duas periferias em pontos opostos. Paragem após paragem espero que o autocarro não pare, que não haja gente para entrar ou sair. Proporciona-me a ilusão que o serviço prestado existe unicamente para servir o meu percurso até casa. Onde posso descansar umas horas. Passo por alguns bairros problemáticos, desses onde fazem rusgas. Onde alguns realizadores gostam de filmar. Através da janela vejo todos os dias o mesmo filme. Escuro, lento, pesado. Durmo durante o dia. Nunca vou ao cinema.

Durante boa parte do trajecto, do lado direito da estrada, ladeia-se a fronteira de um desses bairros. Do lado esquerdo só um descampado. Enlameado quando chove. Não há construção. Ninguém quer investir frente à má vizinhança. Os putos, mesmo àquela hora, brincam no meio do descampado, às escuras porque não existem candeeiros. Mas amanhã também vão apanhar o autocarro, mais cedo que eu, para ir até à Baixa ver o fogo-de-artifício. Como também eu fazia quando era da idade deles e julgava que as coisas tinham que mudar um dia, através de algum desígnio que ainda não vislumbrava por ser muito jovem. Amanhã à hora que passar pelo descampado já não estará ninguém. Encostarei a cabeça à janela e tentarei antecipar o sono.