terça-feira, 23 de novembro de 2010

A pianista

A minha vizinha do terceiro andar é pianista. Da maneira que tem chovido nos últimos dias parece que estou em Viena ou em Praga. Ela pratica três horas por dia e ouve-se em todo o prédio. A maioria dos condóminos é jovem. Uns gostam, aos outros não lhes importa. A única vizinha que se tem mostrado incomodada é a do segundo andar, que vive imediatamente por cima de mim, tem 60 e tal anos e vive sozinha. Aos domingos, às vezes, ela pede assistência, por algum achaque, e vem uma ambulância e levam-na de cadeira de rodas. Talvez conversem com ela e talvez ela melhore. A pianista tem talento e toca realmente bem. Nunca a vi nem a consigo imaginar. Mas teria muito gosto, por exemplo, em vê-la algum dia em concerto e felicitá-la pessoalmente. Não percebo de piano mas nas sessões que costumam demorar entre duas e três horas dedica-se a tocar peças inteiras, isto é, toca do princípio ao fim uma peça e logo a mesma ou muda para outra. Depois pode tocar uma mesma peça ora num registo mais rápido ora num registo mais lento, ou com um tom mais agudo ou mais grave, ou ambos, o que envolve todo o prédio num certo ambiente teatral.
Às vezes ela parece obstinada com determinado trecho. E repete-o até à exaustão sem se perceberem de modo evidente as alterações que vai experimentando. Toca o mesmo trecho vezes sem conta. As variações apenas se podem intuir. Consoante o seu próprio ouvido, a sua vontade de perfeição, o entusiasmo, vai fazendo ressoar um mesmo fragmento. Porque ela não pode estar a tocar o mesmo excerto obsessivamente sem aplicar mudanças nos tempos ou no modo. Não pode estar a tocar como louca.