Saí com a mala que costumava
utilizar quando viajava em low
cost, a mala com as
dimensões adequadas
para não pagar taxas extra. Não cabia muita coisa mas não pensava
ter contactos sociais que impusessem apresentar-me limpo e engomado.
Cheguei à estação e olhei para o quadro das partidas. Tinha fome.
Resolvi apanhar um comboio que partia em hora e meia; dava-me tempo
para comer alguma coisa. O destino era indiferente. Entrei no bar e
pedi um hambúrguer. A carne estava bastante mal passada mas não
reclamei. Tinha várias horas para fazer a digestão. Muito tempo
para digerir a carne vermelha semi-crua. Dos outros acompanhamentos
não havia queixa. Notava-se que a cozinheira trabalhava com
dedicação. Havia muita gente e ela talvez quisesse, naquele
momento, despachar o maior número de clientes no menor intervalo de
tempo. Para compensar o facto da carne estar mal cozinhada mastiguei
com vagar. A primeira vantagem de decidir deitar borda fora os
objectivos é começar imediatamente a viver com lentidão.
Prolongava no paladar o sabor da carne bruta e isso era o único
inconveniente. Obstinava-me em não querer reclamar com ninguém.
Muito menos com a cozinheira de um snack-bar de uma estação de
caminho de ferro. Não chamaria o empregado. Comeria devagar,
mastigando cada troço de carne com o mesmo esmero que caracterizara
toda a minha vida até sair de casa com a mala pequena, a mala para
as viagens obrigadas, as mesmas em que me apresentava na fila para a
porta de embarque com cara de bruto; ou de carne crua, vermelha de
vergonha, ainda a verter líquido, contrariedade.
Uma vez dentro, até ao
pescoço. Não podia regressar a casa. Não tinha sítio para onde
voltar. Não apanhei o comboio dessa noite nem nenhum outro nos dias
seguintes. Podia entrar em qualquer composição e sair para
qualquer lugar. Lia os jornais que o bar da estação
disponibilizava. As secções de todos os jornais. E enojava-me.
Passeava pela gare. Assistia às despedidas dos passageiros. Um rapaz
gordo abraçava uma rapariga mais jovem. Depois do abraço ele
aproximou-se de novo e tentou beijá-la. Ela afastou a cara. Dormia
sentado nos bancos. Depois de umas noites o corpo habitua-se, o
cansaço vence a necessidade artificial de conforto. Não
cheguei ao pescoço.
Fiquei pelo caminho. E esperavam-me ainda e de certeza pediriam
explicações. Não fariam suposições porque não dou pretexto a
suposições. O pior de tudo. Conseguir razões que
satisfizessem a curiosidade doentia que questiona o porquê do
abandono.
Outras vezes voltei à estação e pedi o mesmo menú. A carne bem
cozinhada, escura, quente, gordurosa, salgada. E voltava para casa,
quente. Depois de escolher a gravata para o dia seguinte, deitava-me
e abraçava a minha mulher – que iludi com as explicações mais
verdadeiras, contraditórias. E pensava na gare e nos passageiros.
Nas raparigas jovens e incertas – que sabem gerar toda uma complexa
classe de sentimentos ambíguos. Que se libertam, soltam, só para
logo aprisionar.
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