segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Viagem ao fim da noite

Tudo o que é interessante ocorre na sombra, não há a menor dúvida. Não se sabe nada da história autêntica dos homens, escreveu Céline no seu terrível Viagem ao Fim da Noite.
Saí com a mala que costumava utilizar quando viajava em low cost, a mala com as dimensões adequadas para não pagar taxas extra. Não cabia muita coisa mas não pensava ter contactos sociais que impusessem apresentar-me limpo e engomado. Cheguei à estação e olhei para o quadro das partidas. Tinha fome. Resolvi apanhar um comboio que partia em hora e meia; dava-me tempo para comer alguma coisa. O destino era indiferente. Entrei no bar e pedi um hambúrguer. A carne estava bastante mal passada mas não reclamei. Tinha várias horas para fazer a digestão. Muito tempo para digerir a carne vermelha semi-crua. Dos outros acompanhamentos não havia queixa. Notava-se que a cozinheira trabalhava com dedicação. Havia muita gente e ela talvez quisesse, naquele momento, despachar o maior número de clientes no menor intervalo de tempo. Para compensar o facto da carne estar mal cozinhada mastiguei com vagar. A primeira vantagem de decidir deitar borda fora os objectivos é começar imediatamente a viver com lentidão. Prolongava no paladar o sabor da carne bruta e isso era o único inconveniente. Obstinava-me em não querer reclamar com ninguém. Muito menos com a cozinheira de um snack-bar de uma estação de caminho de ferro. Não chamaria o empregado. Comeria devagar, mastigando cada troço de carne com o mesmo esmero que caracterizara toda a minha vida até sair de casa com a mala pequena, a mala para as viagens obrigadas, as mesmas em que me apresentava na fila para a porta de embarque com cara de bruto; ou de carne crua, vermelha de vergonha, ainda a verter líquido, contrariedade.
 
Uma vez dentro, até ao pescoço. Não podia regressar a casa. Não tinha sítio para onde voltar. Não apanhei o comboio dessa noite nem nenhum outro nos dias seguintes. Podia entrar em qualquer composição e sair para qualquer lugar. Lia os jornais que o bar da estação disponibilizava. As secções de todos os jornais. E enojava-me. Passeava pela gare. Assistia às despedidas dos passageiros. Um rapaz gordo abraçava uma rapariga mais jovem. Depois do abraço ele aproximou-se de novo e tentou beijá-la. Ela afastou a cara. Dormia sentado nos bancos. Depois de umas noites o corpo habitua-se, o cansaço vence a necessidade artificial de conforto. Não cheguei ao pescoço. Fiquei pelo caminho. E esperavam-me ainda e de certeza pediriam explicações. Não fariam suposições porque não dou pretexto a suposições. O pior de tudo. Conseguir razões que satisfizessem a curiosidade doentia que questiona o porquê do abandono.
 
Outras vezes voltei à estação e pedi o mesmo menú. A carne bem cozinhada, escura, quente, gordurosa, salgada. E voltava para casa, quente. Depois de escolher a gravata para o dia seguinte, deitava-me e abraçava a minha mulher – que iludi com as explicações mais verdadeiras, contraditórias. E pensava na gare e nos passageiros. Nas raparigas jovens e incertas – que sabem gerar toda uma complexa classe de sentimentos ambíguos. Que se libertam, soltam, só para logo aprisionar.

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