domingo, 8 de janeiro de 2012

Piedade

Há várias semanas que não saía de Madrid. Até me sugerirem a visita a um lugar a meio caminho dos Pirenéus. Falaram-me de uma aldeia abandonada mas não me contaram a história toda. Há uns anos a aldeia foi comprada por uma organização sindical e transformada numa espécie de colónia para os sindicalistas gozarem as férias de verão. Durante o inverno, os alojamentos estavam disponíveis para reserva por parte de qualquer pessoa, independente de lutar ou não pelos direitos dos trabalhadores.

Fiz-me ao caminho. Cheguei bastante tarde porque parei algumas vezes para comprar cerveja. Pedi a chave do quarto na recepção, que ficava à beira da estrada. Junto com a chave deram-me também um pequeno mapa do casario. O carro ficou num parque de estacionamento que também servia de campo de futebol, o único sítio plano das redondezas. Reparei que estavam duas balizas em cada extremo da planura. Estacionei no meio campo. Teria que seguir a pé durante alguns minutos por um caminho empedrado; passando por uma capela seria a terceira porta à direita. Mantive-me no carro uns momentos e não escutei barulho algum. Madrid já só estava ao alcance de outras tantas horas de carro. Apeteceu-me mijar. Aproximei-me da bandeirola de canto e, enquanto me aliviava, encontrei dois olhos que brilhavam na escuridão. Apesar do negrume consegui desenhar o porte da figura e não restavam dúvidas: era um javali.

O javali moveu-se quando lhe lancei o isqueiro que levava no bolso. Não devia ter fome. Os campos das redondezas estavam cultivados. Aproximei-me e ouvi o restolhar da criatura a afastar-se. Continuei o passo e entrevi um porte considerável. Entusiasmei-me, queria vê-lo mais de perto e desejei que não tivesse medo de mim. É quando não queremos fazer barulho que, inadvertidamente, pisamos algo que não devemos ou deixamos cair um objecto. Apesar do extremo cuidado acabamos por ser denunciados. Naquela ocasião, foi um pequeno ramo que se quebrou sob o meu peso. O javardo assustou-se e deu meia volta. Os meus olhos habituaram-se rapidamente à escuridão e soube que podia alcançar aquela espécie de porco. Comecei a correr. O javali avançava pesadamente à minha frente mas eu ganhava-lhe terreno. Senti-me imediatamente superior e atingiu-me uma alegria recém-chegada da liberdade. Comecei a dar gargalhadas e a gritar, chamando-o a mim, o animal inferior e temeroso, fugindo, embora eu, ao mesmo tempo, me dispusesse a estar à sua altura, de criatura instintiva e sem raciocínio. Gritei como um louco; foram momentos incríveis. Entrámos num vinhedo e o javali depois de uma mudança de direcção parou. Estaquei o passo e calei-me. Desejava aquela diversão; não sabendo exactamente como conseguir o triunfo queria ganhar aquele jogo. Depois o animal voltou à fuga, desajeitado, pareceu-me esgotado e por isso grotesco e assim mesmo endoideci ainda mais. Suava e sobre o suor seco voltei a suar. Apanhava pedras do chão que lançava em direcção ao lombo gordo do javali. E depois as forças falharam e talvez por isso tropecei nas minhas pernas bambas e caí. Estava muito perto do animal que por momentos serviu todos os meus propósitos de conquista. Caí e o javali escutando o impacto seco do meu corpo reteve alguma espécie de ameaça final, virou-se e correu na minha direcção, que me encontrava a pouca distância e paralisado. Atingiram-me consecutivas marradas e as minhas pernas saltaram no ar, protegi a cabeça, senti as pernas húmidas do sangue que começava a escorrer e gritava, não parei de gritar - de verdadeira loucura – enquanto o javali, sem piedade, cumpria o dever de vingança que o assistia.

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