terça-feira, 23 de agosto de 2011

Amor fati

Voltei à casa que pertenceu a três gerações anteriores à minha, em Malpica do Tejo, na raia, perto da fronteira com Espanha. O primeiro que fiz foi pedir emprestada uma espingarda ao primeiro vizinho que encontrei e matar o cão a quem só caíam alguns ossos quando alguém se lembrava de longe em longe. Encontrei-o num estado perfeitamente comatoso, cheio de feridas e manco. Foram precisos três tiros. Nunca tinha premido um gatilho e não sabia precisamente para onde apontar.

Dei uma volta pelas imediações. Restavam algumas oliveiras e algumas figueiras. Um regato onde secava um fio de água. Fiz uma cova e enterrei o cão. Agora estava completamente sozinho. Pus-me a descascar o tronco de uma árvore enquanto pensava como estarias. Fiquei com as unhas pretas. Ali as pessoas não me rodeavam. Era indiferente o que fazia. Ainda não tinha entrado em casa. As malas estavam à porta. Deitei-me no banco improvisado que tínhamos debaixo da janela. Uma tábua larga, quase branca de tão seca pelo sol, sustentada por duas latas vazias de cal.

A primeira vez que te vi. Estavas no camarim. Posavas para o espelho. A perna cruzada, o joelho alto, o cotovelo apoiado no joelho e a mão a passear pelo cabelo todo a um lado do pescoço. Os teus lábios vermelhos, de personagem insolente, o nariz ligeiramente desafiante. Tanta pele. Braços finos.

Não arrumei as malas de propósito. Não meti a chave à fechadura porque sabia que devia regressar. A viagem havia que fazê-la. Mas não pensava ficar um único dia. Mesmo assim procurei tornar minimamente aproveitáveis os quilómetros acabados de cumprir. Entrei e abri todas as janelas. Deixei correr a água estancada nos canos. Estavam dois pássaros mortos na chaminé. Muito pequenos. De certeza que morreram sem ter tido tempo para aprender a voar. Cortei diversos panos em bocados e enchi um balde de água. Não tinha detergente e não queria conversas com ninguém da aldeia. Já tinham bastado as perguntas indiscretas do dono da espingarda. Embora o entenda. Emprestar uma arma sem procurar averiguar se não se está perante um suicida ou, pior, um homicida, é uma imprudência enorme. Limpei a casa de cima a baixo e de ponta a ponta. Acabei o trabalho e fiquei a olhar para a fachada da casa, agora com as janelas abertas. O banco improvisado, a tábua apoiada nos dois baldes de cal, continuava a dar um aspecto contingente àquele espaço. Limitei-me a descascar mais um pouco do tronco da árvore. Estava cansado e não era aconselhável iniciar a viagem de volta. Decidi esticar as costas no banco improvisado. Andava com dificuldade em adormecer. Desci até ao regato. Cavei e depus algumas pedras a interromper o avanço da água, construí uma mini-hídrica que a determinado passo estreitava a corrente e depois a precipitava. Fechei os olhos e esperei que o som da água me ajudasse a adormecer e a esquecer-me de ti. Sua actriz.

2 comentários:

  1. Muito bonito Samuel, como de costume.

    ResponderEliminar
  2. Tive que enviar o comento como anonima que o google de ha uns tempos para ca nao aceita o meu id... Mas penso que pela url saiba quem sou. Ana

    ResponderEliminar