quarta-feira, 1 de junho de 2011

Prolongamento do campo de batalha

Daquela vez apanharam-me. Mas isso foi porque perdi definitivamente as estribeiras. Devia ter seguido com as burlas, um negócio muito mais limpo. Alguns caíam, outros não. Quando trabalhava bem e conseguia confiança total o negócio corria às mil maravilhas. Houve vezes que nem contados estavam trinta minutos e os meus benfeitores já riam selvaticamente comigo. Numas horas de trabalho conseguia o suficiente para viver durante vários meses sem olhar a gastos. Desaparecia. Viajava e aprendia línguas. Deslocava-me muito. Via internet, contratava as melhores putas, aquelas que anunciam possuir uma série de cursos. Mas o que conseguem é fazer teatro todo o tempo; nessa representação são habilíssimas. Outras vezes conhecia alguma mulher nos hotéis. No fundo não era muito diferente de burlar um desses empresários a quem a própria ambição traía. Conquistar o afecto dessas mulheres era uma boa maneira de manter a forma entre um arruinado e outro.

Comecei a perder a paciência. Alguns faziam-me falar muito e durante muito tempo até caírem no meu conto. Quando começava a correr mal era quando percebia que estava a perder tempo com algum agoirento sem a mais mínima expectativa de crescimento, para já não falar em esperança. Mas ao mesmo tempo não me dava por vencido, por uma espécie de orgulho inútil. A paciência nunca foi uma virtude que a existência me tenha concedido. Apanharam-me. Dei às de Vila-Diogo mas aguentei até à última e já era tarde para uma fuga bem sucedida. Porque não confio na sorte. Quando actuo não avanço sem ter o ambiente controlado e a maioria das contingências previstas. Não sou um amador. Vigiei um conhecido empresário que por não se saber comportar e por se meter com vagos do pior género já tinha sido várias vezes notícia por escândalos financeiros. Tive que fazer um pequeno investimento e facilmente ganhei a sua confiança. Tentei extorquir-lhe directamente dinheiro, com violência física e muitas ameaças, coisa que até aí nunca me tinha passado pela cabeça. A coisa correu mal e a polícia foi avisada. Cabrões. Passavam as passas do Algarve para conseguir uma renovação da farda ou uma arma que não tivesse ferrugem mas cumpriam a sua missão de modo exemplar. Tentei provocá-los ao máximo para que me dessem um bom ensaio de porrada que depois pudesse denunciar; mas os muito filhos-da-puta mantinham-se firmes naquela dignidade bacoca que sobretudo não arrisca uma suspensão; saltar um pouco as regras podia querer dizer deixar os filhos de estômago vazio. Sentia verdadeira pena dos agentes que me algemaram. Na verdade, eles não tinham culpa de nada. Conseguiram um emprego vitalício e isso para eles significava atingir o grau mais alto na escala das necessidades satisfeitas.

Foi a primeira vez que me apanharam. A primeira e a última. Aprendo com os erros. Não tinha antecedentes e consegui dar-lhes a volta. No fundo não foi muito difícil. Foi como fechar um negócio, assinar um contrato inexistente. Embora a recompensa fosse a minha liberdade e não uns valentes cobres. Agora tenho que calcular todos os meus actos e vigiar-me de perto. Não posso voltar a errar. Não me vejo preso numa cela, com saídas ao pátio ordenadas por gente crente, que lamenta o desvio do caminho mas que acredita estarmos sempre a tempo de voltar à mesma vereda que eles trilham a passo de boi; nunca mais poder sair na penumbra e aspirar o cheiro da noite sabendo que ainda me restam dias e dias de gozo antes da golpada seguinte; sem ouvir o ruído verdadeiro das pessoas que vivem do trabalho razoável e não quiseram ou tiveram valor para alargar o campo de batalha ao batimento cardíaco desesperado, porque eu sinto-me vivo e eles estão todos mortos, mais mortos que uma perna de borrego.

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