quinta-feira, 9 de junho de 2011

Coaxar

A quem opte pela civilização em vez da brutalidade talvez esta história – totalmente verídica – pareça ignominiosa. Acredito que à quase totalidade dos leitores esta pequena crónica pareça sem dúvida repelente. Mas sou impressionável e estou sujeito às leis mais básicas da vida, aquelas que disparam a pulsação; são os episódios invulgares que assinalam a passagem do tempo. E aqui estamos todos, sujeitos ao tempo e ao assombro.

Depois de trabalhar mais de 35 anos, Heinrich L. reformou-se. Trabalhou décadas como técnico de manutenção na indústria aeronáutica, nas imediações de Rostock, Pomerânia Ocidental, Alemanha, a sua função: assegurar o movimento incessante das máquinas, a engrenagem bem oleada, o deslizar constante e sem pausas não previstas; perda de tempo que a galopante máquina nazi faria pagar caro. Viúvo, reformou-se e libertava os pensamentos nas rotineiras tarefas domésticas. Chegava o momento de viver para si mesmo. Não faria outra coisa senão observar como decorriam os dias ainda amenos; ao mesmo tempo que a iminência da guerra obscurecia o entusiasmo de Rostock, uma das primeiras candidatas à destruição caso rompessem os bombardeamentos. Heinrich L, pendente das notícias, preparava-se para ser um refugiado ideológico até ao fim dos seus dias, não apoiava nem contrariava os acontecimentos – sentia-se velho -, que o deixassem sossegado com as leituras a que finalmente teria ocasião de se dedicar. Eram difíceis os projectos de instrução, mas o velho reabilitador de máquinas conseguiu prover-se de alguns volumes de autores que intermitentemente apareciam à superfície, nos espaços esquecidos pela cartilha nazi. Como um volume de contos de Rainer Maria Rilke, a única prosa conhecida do escritor austríaco.

Lia no pequeno jardim que plantou diante de casa mas era constantemente importunado com o coaxar das rãs que o vizinho mantinha num lago próximo. O vizinho, sensivelmente da mesma idade e com igual desejo de repouso, dedicava-se à criação ociosa de rãs, sem outro objectivo que não fosse, precisamente, deleitar-se com o coaxar vespertino dos anfíbios. A dificuldade de concentração de Heinrich L. era enorme e agudizava-se com aquele garganteio que, pior que pelos ouvidos, lhe parecia entrar esófago dentro. Não havia modo. Preferia ler durante a tarde e os bichos, aliás carentes de beleza, eram incompatíveis com os escritos eloquentes ou pícaros de um jovem artista Rilke. O rumo dos acontecimentos não deixava margem. Heinrich L. vivia os últimos dias aproveitáveis e com o início da contenda não via outra hipótese que não fosse deixar-se morrer.

Abriu a arca onde guardava alguns pertences de utilização remota e tirou uma espingarda de ar comprimido. Dirigiu-se à casa do vizinho, que já sabia avesso a desfazer-se das rãs e disparou várias vezes em direcção ao pequeno lago. Nenhuma rã foi atingida, saltaram todas para o charco, mas o vizinho apareceu à porta de casa, incrédulo, talvez adormecido, acompanhado por um pequeno transístor a emitir vozes roufenhas. Depois de Heinrich L. baixar a arma, o criador de sapinhos virou o pescoço para dentro de casa e proferiu as palavras mais previsíveis: começou a guerra.

(A obra mencionada: Rainer Maria Rilke, Serpientes de Plata y otros cuentos. Siruela, 2006.)

(Revisto.)

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