Durante algum tempo escrevi num blogue chamado Mina de Carvão. Escrevia na primeira pessoa pequenos relatos com três parágrafos. Os relatos tratavam invariavelmente de pessoas comuns às quais acontecia algo que as fazia parar, digamos, para organizar as ideias. A forma de chegar a essa tentada organização era contar a sua própria história, ou pelo menos episódios significativos. Narradores possíveis que abordavam momentos transitórios. Usava esses textos para me recrear um pouco e para dizer o que queria sem ser directo. Primeiro porque não conseguia e não sabia ser directo. A maioria dos textos era totalmente ficcionada, com raros pontos de contacto com a minha biografia. Os leitores pensavam estar perante alguma classe de expiação, porque normalmente conseguia ser convincente.
O nome do blogue surgiu da leitura de uma entrevista feita a Philip Roth, ainda antes de receber o Nobel. O escritor era bastante citado, mais citado que lido, suponho, como tantas vezes acontece. Nessa entrevista perguntavam-lhe se era possível reunir alguns conselhos para alguém que se propusesse começar a escrever. Roth dava três ideias. Primeiro que o candidato fosse largado num país distante onde não conhecesse nem a cultura nem o idioma. Ao regressar, o ideal seria contrair alguma doença grave da qual conseguisse recuperar com dificuldade, quase por milagre, e quando estivesse totalmente restabelecido lançá-lo durante um ano nas galerias de uma mina de carvão. Não me lembro se Roth acrescentava alguma outra sugestão. Estas propostas são difíceis de seguir à risca. Faço o que posso. Dou umas voltas. Saio e bebo uns copos. Em geral, procuro foder com assiduidade para libertar a mente de distracções, da afectação, e abordar a leitura com serenidade. De resto não vou em festivais. Não gosto de circos. Acabo sempre por voltar, muito satisfatoriamente, à minha particular mina de carvão.
Não gosto da minha própria imagem quando sentado ao computador. Às vezes estou com tão mau humor que me despersonalizo. Vejo-me a mim mesmo, ao longe, concentrado. Verdadeiramente patético. Mas tento não pensar nisso. É por isso que não tenho nenhum ritual para escrever. Quando chega a hora, muitas vezes obrigo-me a que a hora chegue, pego nos quatro ou cinco livros que na altura estiver a ler e coloco-os em cima da mesa. Depois sento-me e escrevo. Isso é tudo. Quando não consigo ordenar as ideias, as imagens, nessas alturas levanto-me, quase por um impulso que me empurra para uma necessidade repentina de senso comum, e no terraço varro as folhas secas das árvores. Depois volto, sento-me, e releio o que escrevi.
Não gosto sequer da minha própria imagem quando estou a ler. Estamos tão bem formatados pelo molde da estupidez que estas coisas acabam por acontecer. O facto de me saber relativamente aplicado causa-me aversão. A representação parece-me muito exagerada. Tento abstrair-me e fazer que estou dedicado a outra actividade qualquer bem mais banal, como confirmar coisas nos bolsos. Em todos. Um por um. E não a ler. Se estou com gente à volta, por exemplo, há sempre uma altura em que deixo cair o livro. Para gerar a ideia de que não estou assim tão concentrado. Que não sou assim tão bom leitor. Leio para fazer algo. O que não é de todo verdade. Leio aquilo que deve ser lido, os autores que sabem muito, poucos vivos, e aprendo do que leio, e vivo do que leio e modifico coisas sempre que possível. Deixo-me influenciar positivamente. Não é preciso mandar-me ler tudo outra vez. No fundo sou um bom leitor, é isso que sou, simplesmente um bom leitor que coloca em roda livre a vida real.
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