sábado, 23 de abril de 2011

Obituário

Morreu o narrador de Néon. Não foi surpresa para ninguém. Estava já sob vário pinta medicação. Trabalhou enquanto lhe foi humanamente possível. Custou-lhe abandonar o balcão onde esteve três décadas. Não fui ao funeral porque não posso deixar de faltar a todos os funerais a que devia comparecer. Mas estive no lugar onde o narrador de Néon preferiria ter continuado até ao fim: o seu bar. Ex-bar. Não continuou atrás do balcão até ao último suspiro por nunca ter estragado a noite a ninguém e não querer quebrar essa boa racha. Não queria protagonizar o triste espectáculo de cair redondo a meio da preparação de um Tom Collins.

Conheci-o quando andávamos – de certo modo – em itinerância pela Europa. Ele começou por trabalhar em hotéis na Suíça, passou pelo norte de Itália, principalmente Génova e Turim, e estabeleceu-se por fim em San Remo, onde trabalhou no casino poucos anos antes de voltar a Portugal. Conhecemo-nos em Turim. Eu procurava uma cidade onde encontrar a tranquilidade necessária para escrever o meu primeiro romance. Nos períodos em que não se trabalha, em que não se está encerrado, é muito útil descer à rua. E em Lisboa muitas vezes ficava em desordem, um estado alterado que não permitia a continuação, partir do ponto em que tinha ficado – e sobretudo não me permitia avançar com o mesmo ritmo, a mesma cadência imaginada. Em Lisboa o que não consigo é controlar-me. Dominar os ímpetos. Por conhecê-la. E conhecer demasiado bem uma cidade, uma pessoa, para mim é desastroso. Convivo mal com os enganos alheios. Convivo com as minhas imposturas porque delas tenho consciência e arranjo as minhas próprias formas de celebrá-las ou de lhes fazer o luto – conforme a ocasião. Podia fazer um inventário de cidades magníficas para escrever. Todas longe da minha cidade natal. Das cidades em que uma vez saído à rua consegues manter a mesma liberdade interior de quando estás encerrado e não começas em constantes diálogos interiores que fazem deslocar o que realmente importa: uma invenção onde não entrem dialécticas entre o bem e o mal. Em Lisboa é necessário opor resistência a determinadas exalações que acodem do passado, ou do presente porque o passado e o presente numa cidade em que se viveu desde sempre vem sendo o mesmo. Caminhando pela Rua dos Remédios não aprendias a pensar, dizia-me enquanto bebia uma cerveja no ex-bar. Não me atrevia a pedir um cocktail aos novos donos, a novatos. Não gosto de novatos nem de amadores. Fui lento enquanto jovem; mesmo em Turim e com algum sossego, esse principiante que fui, posso dizer, foi dado como desaparecido aquando de uma expedição aos Alpes italianos, pernoitando sempre a boa altitude, nunca baixando dos mil metros e esquecendo-se com frequência das coisas lá em baixo.

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