segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Não sou Walser

Este texto surge da vontade de imitar um pequeno opúsculo de Vila-Matas intitulado: No soy Auster. Vila-Matas estima muito Paul Auster mas não quer ser confundido na rua, sujeito que está a alguma semelhança física. É incómodo explicar que não somos quem os outros pensam. Comigo no meu labirinto, encontrando-me sempre com novas portas e passagens, como os ratos em voltas, o escritor norte-americano não me adianta nada.

Paralelamente, também gosto muito de Walser e em alguns âmbitos gostava de mascarar-me do escritor suíço de traço germânico. Seguir as pisadas do homem desaparecido. Principalmente as últimas, dadas num bosque nevado em Herisau, Suíça. Walser caiu morto e o corpo inanimado foi encontrado por crianças. A minha tendência para o passeio aparece antes de saber tudo isto. Só alguns nomes: Setil, Torre das Vargens, Funcheira, Beirã, Casa Branca. A primeira geografia foi lida num manual dos horários do caminho-de-ferro. A verdade é que nunca mais passeei com tamanha falta de rumo. Com cada linha ferroviária que acaba os lugares de um certo mapa começam a desaparecer. É também por isso que escrevo frase atrás de frase: contra o esquecimento.

Não sou Walser. Mas imagino a forma como o meu corpo, caído inanimado, podia ser encontrado por crianças. Sem traumas e não por vontade poética. Como diria um dos personagens do Magnólia, é perigoso confundir crianças com anjos. Crianças entretidas, distraídas; o meu último episódio forçosamente involuntário: deter um jogo infantil. E depois fazer parte dele. Caído no meio de um bosque nevado. Uma visão chamativa. As crianças aproximavam-se. Não me movia. Não sentia frio. As crianças, curiosas, troçavam e pensavam que havia adormecido embriagado. E começavam a usar-me como um boneco de carne e osso. Levantavam uma perna e soltavam-na sobre a outra. Uma das mãos a cobrir-me os olhos. A outra enterrada até ao pulso. Atiravam-me com bolas de neve e escondiam-se atrás das árvores. Depois, como se temessem que pudesse acordar, partiam a correr. Contavam aos pais que estava alguém deitado na neve. Os pais sorriam mas não interrompiam as conversas de adultos. O dia prosseguia e o encontro era esquecido. Para uma criança, afinal, todas as ocasiões servem para brincar.