quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Um grito que me acompanha

Durante alguns dias esta história distraiu-me. Um homem de meia-idade mudou-se para o andar por baixo do meu. Normalmente saio de manhã para gravar sons, às vezes no centro da cidade, outras vezes tomo a estrada que leva até à barragem, estaciono a meio do percurso e continuo a pé. Existe uma pequena atalaia de madeira, nas margens da barragem, um observatório de aves, e passo algumas horas com o gravador ligado.
O novo vizinho recebia muitas visitas. Ouvia vozes e risos até tarde. Mas só o via quando ele saía para estender roupa. Tentava apanhá-lo nesse momento e assomava-me à janela. Ele tinha a mesma idade que eu e também vivia sozinho.
O que aconteceu foi que caíram umas calças. Continuam no chão, misturadas com folhas das árvores e molas partidas. Chove, a roupa enxuta volta a encharcar-se. Num dia de mais vento, foi a vez de uma camisola ir parar ao chão. O meu vizinho também não apareceu para recolhê-la. Ainda o vi umas duas ou três vezes perto do estendal. Vi-o de pé, a olhar para o muro enquanto mexia as mãos dentro dos bolsos. Encontrei-o naquela posição umas duas ou três vezes. Dava dois ou três passos e detinha-se. Agora já não acredito que ele regresse. Não deixava muito tempo a roupa na corda. Esse foi o primeiro sinal de que algo mudara.
Já não penso no assunto, que me parece de solução complexa, e o que na verdade me serve de entretenimento dos dias seguidos é tudo o que é visível e tem movimento; a minha preferência, já sabem: gravar os gritos das aves quando voam mais baixo.
Quando nas margens da barragem consigo uma boa gravação das aves marinhas, quando a garça-real faz um voo rasante, quando se ouve o eco depois de um grito suficientemente alto, um grito que guardo nos ouvidos.