quinta-feira, 21 de maio de 2009

Os furtivos

Quando apetecia escrever, não escrevia. Saía de casa. Para colar intenção ao cruzar a porta agarrava no saco do lixo. Passava pelo caixote do prédio. Separava as garrafas. Caminhava. Voltava quando os mapas das ruas estavam todos tachados; quando estava exausto. Pagava facturas. Entrava nos correios e se não estivesse ninguém a ser atendido julgava que todos haviam sido assassinados e que, se não se precavesse, seria o próximo. Sentava-se no balcão do bar. Passava a tarde a beber cervejas e a descascar amendoins, chamava a empregada e apontava para o debate no congresso dos deputados, «qué cabrón!», certificava-se muitas vezes de que trazia a chave consigo; por favor… Comprou um livro para ter perto, algo seu. Para ter um motivo e ainda não desistir. Para dirigir o olhar quando ficasse envergonhado. Para ter alguma coisa que guardar. Para não andar com as mãos nos bolsos. Para ter a esperança que um desconhecido lhe dirigisse a palavra se se esquecesse dele num banco. Para seduzir alguém através da coincidência do autor. Finalmente: abandonou a falta de rumo e decidiu ajudar os furtivos da ria. Queria fazer algo ilegal. Apanhava percebes. Vendia ao consumidor final. Competia, com bons resultados, com a lota. Quando ainda lhe apetecia escrever repetia-se: a economia paralela também é uma vida dupla e o mexilhão rende mais.

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