domingo, 22 de fevereiro de 2009

Psicofisiologia

Aventurei-me na tradução espanhola com um livro difícil: Hambre, de Knut Hamsun. Depois de dois meses de mau tempo aproveito a trégua para ler ao sol. As tradutoras decidiram não facilitar a vida ao leitor e por isso a tradução tem sido uma feliz surpresa. Os muitos diálogos, que não se sabe se são monólogos, foram deixados tal e qual. O estilo de Hamsun inaugura e fecha um género. Remete para as leituras primordiais que são substrato de tantos outros escritores, de resto Fome foi o primeiro livro do escritor norueguês. Se Robert Walser, outro escritor do início, percorre um mesmo estado mental para os «passeios maravilhados» dos personagens e que é a forma mesma de colocar a vida de lado, Knut Hamsun é bem mais naturalista e liberta o personagem numa permanente excitação psicofisiológica. O personagem principal tem fome. É certo. Mas mesmo nesse estado de necessidade básica nem tudo gira em torno do alimento. Num primeiro instantâneo convém o leitor não se surpreender com a chamada «loucura». Depois o próprio Knut Hamsun escreveu, quando julgado pela sua traição à pátria e aparente defesa nazi, que os seus personagens não tinham «uma faculdade dominante que guiava as suas acções» e continuou socorrendo-se de Dostoyevski: «Desde que comecei julgo que não há em toda a minha produção um só personagem que apresente essa faculdade dominante tão absoluta e monocórdica; todos carecem disso a que chamam “carácter”; estão divididos interiormente, fragmentados; não são nem bons nem maus, são as duas coisas, complexos, de ideias e condutas volúveis. E assim sem dúvida sou também eu próprio…»

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