quinta-feira, 2 de fevereiro de 2006

Olá João César



Venham daí essas tripas. Descansa, não falo para nenhum entidade supra-humana. No teu gosto nada me contraria. Fica só uma coisa rápida template abaixo a recordar que a verdadeira morte só decorre do esquecimento. Meu porco bom. Homem frágil e bravo. Sei que estás a apodrecer debaixo da terra. Há dois anos passei a sentir-me menos acompanhado; que estrago infeliz. O teu vai e vem havia sido transformado em muitos passos ganhos. Assaltei através de ti a riqueza de enfiar a mão na massa. Arroz devidamente malandrinho. Pintelhos à lupa. Freiras forretas. Meninas dadas. Mel pelos beiços. Vinde abelhinhas. Quanto ao menos não se impõem grandes conversas, ó visceral incorruptível. Bem conheces do que a casa gasta. Os mantimentos são poucos e contigo já não se pode contar. Lembro com saudade a vez em que mandaste foder esta gente toda. Julgaram que era má educação. Confundem falta de maneiras com a sinceridade de um desejo profundamente sentido. Outra liberdade que te relembra e me manda algumas vezes ao chão são as belezas leves. Saio-te com propriedade um cona melado. Olha... não gostei do Silvestre. Parecia uma peça de teatro filmada. Mas há a descontar o ano afastado e as coca-colas com que já me encharquei. Há encontros onde o fracasso é sempre partilhado a dois. Vou lá eu fazer ver isto. Digo-te outra. No Branca de Neve perdi as falas iniciais a magicar curioso na rapariga solitária da penúltima fila. Não havia claridade suficiente. No fim era uma pseudo-intelectual envolvida em trapos. E eu a perder os primeiros minutos da tua adaptação do Robert Walser. Um gajo é trocado pelas coisas mais incríveis. Talvez sobre isso não te diga mais nada. Da Comédia de Deus ficou-me uma outra introdução, bem mais elucidativa que viver muitos anos a transbordar energia. Sigo suspenso. Estares morto ou vivo são certezas de vida enclausurada que desprezavas. Encontrar-te em todo o princípio de prazer, amar-te, artesanal, é bem menos fugaz. Meu porco bom: lembro-te todos os dias. A hipótese da tua sobrevivência está no coração e no acto de cada homem livre.

(João César Monteiro, morreu há três anos).

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