sábado, 24 de março de 2012

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José caminhava pelo passeio. Dirigia-se à paragem do metro de superfície. Reconheci-o pela mala castanha que levava todos os dias. A mala de pele cheirava a comida, a refogado de cebola. Todos os dias José chegava ao escritório uns minutos depois de mim. Passava pela minha secretária e trocávamos umas impressões. As flutuações relativas às entradas nas páginas, os países de origem, as subidas e descidas no Google, a optimização de campanhas de publicidade, etc. Colocava a sua mala em cima da minha secretária e imediatamente cheirava a refogado de cebola. Imaginava que José chegaria a casa e deixaria a mala em cima de uma cadeira da cozinha ou directamente em cima da mesa. Revia alguns documentos enquanto a cebola dourava com a ajuda do azeite a ferver.

Anoitecera e os ramos das árvores da avenida filtravam a pouca luz que chegava desde o céu. Terminava mais um dia de trabalho. Acabava de arrancar o carro e abrandei a marcha logo que o reconheci. José era um solitário. Paradoxalmente, são os solitários que mais te podem surpreender. De entrada, terão uma visão das coisas menos permeável. É certo que algum deles também pode ser assassinos em série. Via todos os dias os jornais e não tinha informação da existência de qualquer assassinato nos últimos tempos. E encontro nas pessoas solitárias uma qualidade rara: não interrompem. Mesmo que mal interpretem, a seu bel-prazer, sabem escutar. Pelo menos mantêm-se mais tempo calados.

Convidei-o a entrar no carro. Comentámos o último despedimento na empresa. “Simone falava muito, tinha muitas opiniões”, concluí. Sem surpresa e porque José, segundo parecia, não entendia a correlação entre falar muito e ser despedido, entendeu que a ex-colaboradora falaria dele próprio, enquanto homem, suponho, porque mostrou-me um sorriso insinuante. Desviei a conversa porque não queria ser desmancha-prazeres. Falámos de trabalho. De últimos projectos. José trabalhava num programa capaz de conter todas as palavra e respectivos sinónimos da língua espanhola. Trabalhava sobre a versão inglesa, a única existente até ao momento. Falou-me de um programa bastante elaborado que não faria outra cosa senão atulhar a internet ainda com mais lixo. Como não percebia nenhum entusiasmo da minha parte mudou de assunto. Perguntou-me qualquer coisa sobre o ambiente de conflito que se vivia. Respondi-lhe que me era indiferente. Ele também pareceu não ter nenhuma opinião a respeito. Seguimos a viagem calados e apesar de não sermos amigos o silêncio não era incómodo.

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