sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Pristina

Cheguei a Pristina via Albânia. Apanhei um ferry na cidade italiana de Brindisi e desembarquei em Vlore. Senti-me realmente feliz. O esperado seria não ser feliz na Albânia. Lembrei-me das largas avenidas de Madrid e de todos os seus habitantes. Sentei-me num banco. Havia um armazém e uma praia com muitos detritos na areia. Estavam algumas mulheres na pausa para o almoço. Comiam com um muro como balcão. Não percebi se trabalhavam no armazém ou se eram camponesas. Na berma da estrada e a uns 50 metros estava um homem, motorista, manejando um macaco hidráulico para mudar o pneu a uma caminoneta enquanto uma famílía esperava, as crianças sentadas no passeio. Primeiro experimentei os habituais pensamentos de pessoa asséptica mas depois esforçei-me por me concentrar simplesmente no caminho até ao centro. Esqueci o normal e o necessário e rapidamente desaprendi o medo sociológico.

A viagem foi longa e não muito esclarecedora uma vez que adormeci logo nas primeiras rectas. Mudei duas vezes de camioneta. A viagem a Pristina teve motivos fortemente sexuais que rapidamente se revelaram, ao mesmo tempo, motivos de ordem sentimental. Ela era uma albanesa do Kosovo, e não se mexia quando o fazíamos. Isso agradava-me muito. Manifestava-se sob o ponto de vista vocal mas não se mexia. Posicionava-se da maneira mais prazenteira possível mas mexia-se realmente poco. Na generalidade tinha pouca exigência e eu apoio toda a ausência de rebeldia. Não se ficava com a ideia de ter passado por uma qualquer revolução sexual. Não reivindicava. Cheguei ao prédio onde ela vivia com a mãe. Ela abraçou-me. A mãe tratou-me com demasiada simpatia, diria até reverência, e esse comportamento não podia ser genuíno. Tampouco me pareceu exemplar permitir-nos o desaparecimento durante meia-hora (já não nos víamos há uns meses). Mas ela ainda era genuína, os seus calções vermelhos e brancos com cordões e a sua camisola branca de alças e os seus cabelos castanhos lisos e os seus pés descalços e a sua maneira de dar a mão. A mesa da cozinha estava coberta com uma toalha de plástico que não devia ser mudada com frequência. A casa cheirava muito bem porque tinham estado a cozinhar no forno – a única fonte de calor da casa. De facto, a mesa apresentava uns quantos pratos com bom aspecto. Passei um resto de dia tranquilo; a sentir-me importante ao mesmo tempo que pensava: não é preciso muito para viver com dignidade.

No dia seguinte, a mãe saíra para trabalhar, passeámos os dois pelas imediações daquele bairro de Pristina não muito diferente das periferias de Lisboa ou Paris. Quando voltámos a casa ela pediu-me um favor a que, mesmo sendo péssimo com os trabalhos manuais, só pude aceder. Pediu-me que comprasse 3 vidros numa drogaria próxima e que os colocasse na porta do prédio – só um vidro estava intacto. Era uma fórmula óptima para ganhar a confiança e até amizade dos vizinhos. Desloquei-me à drogaria e comprei 3 vidros, prévias medidas tiradas à porta do edifício; comprei luvas e dois tubos de silicone forte. Realmente, a porta do edifício com os vidros partidos dava um aspecto contingente ou incerto a todo o espaço e tornava inverosímeis os sorrisos dos vizinhos. Pus mãos à obra. Imaginava que ela me chamava pela janela no exacto momento em que acabava de colocar o terceiro vidro. Mas coloquei os três vidros – demorando algum tempo – e ela não me chamou. Fiquei ali a olhar para o meu trabalho acabado e pensei quanto tempo durariam os vidros no sítio. Olhei para cima, para a janela, e ninguém assomava. Pensei nas estações de camionagem e em todo o bulício que geravam. Olhei para os vidros na porta. O silicone branco, fresco. Girei o pescoço uma última vez para cima e ela estendia a roupa. Os calções vermelhos e brancos pingaram e molharam-me a cara.

(Revisto.)

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