segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Relógio sem ponteiros

Mesmo quando era mais jovem, encontrar dois velhos sem nenhum outro objectivo que não seja a companhia mútua sempre me deixou uma forte impressão. Uma vez no Alentejo estavam dois velhos sentados à porta de uma taberna. Estava do outro lado da rua e o único que fazia era observá-los. Davam a saudação a quem entrava e saía da tasca e pigarreavam de vez em quando. Uma outra vez em Castelo Branco lembro-me de dois outros velhos sentados num banco, à sombra de uma laranjeira. Aqueles albicastrenses também não pareciam ter especial vontade de contar grandes histórias. Um deles ajeitava o nó da gravata da maneira mais estreita e centrada possível. Depois o amigo ao lado levantou-se e num único gesto compôs-lhe a gravata suportada pelo colarinho branco.

Há dias numa dessas lojas de decoração que vendem fotografias com o skyline de Nova Iorque, quadros da Audrey Hepburn e dos Beatles, encontrei um relógio sem ponteiros. Sinto-me alheio à geral sujeição icónica. Faz as vezes da verdadeira cultura, que não é decorativa e se baseia na curiosidade e na procura de conhecimento. É por isso que ultimamente, cada vez menos, não consigo formar opiniões definitivas. Há pouco tempo estive num jantar em que dois comensais estiveram todo o tempo a debater. Um deles criticava a estratégia de usar Barcelona como principal cartaz turístico de Espanha e louvava a intenção do novo governo de redesenhar a promoção com traço nacional e por nichos, colocando Madrid como ponto de partida. O outro, conquanto Madrid se situasse o mais em segundo plano possível, não colocava objecções ao plano do primeiro. Falava-se de marketing e de política. Para dizer a verdade, estava bem mais interessado nos movimentos de uma das mulheres sentadas perto de mim, com os pés divinamente calçados.

Dois velhos sentados a tarde toda, relembrando ou não o passado, são a melhor personificação dos espantosos relógios sem ponteiros. Na última viagem que fiz de carro, parei numa bomba de gasolina para descansar. A madrugada estava fresca e a estrada nacional solitária. Aí estavam de novo. Dois velhos sentados em cadeiras de plástico. Aproximei-me deles. Desejei-lhes boa noite e quis saber o motivo da deslocação. Um velho amigo tinha enviuvado - coisa rara e quase absurda porque são sempre as mulheres, mais ou menos pesarosas, que assistem à morte dos homens. Arrastei uma cadeira e sentei-me junto a eles. Mantiveram-se em silêncio, só interrompido pelos sorvos de café. Olhei para o relógio e encontrei os ponteiros parados numa disposição impossível. Voltei aos velhos e perguntei-me se a desordem repentina mostrada no meu relógio não seria devido a uma inusitada força magnética daquele par humano de ponteiros estáticos que, secretamente, celebravam o funeral como um dos últimos encontros que fariam parar o tempo e esquecer momentaneamente o vazio e o silêncio vindouros e eternos. Não me atrevi a perguntar-lhes as horas.

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