sábado, 4 de fevereiro de 2012

Bolas de sabão

A dada altura cheguei a pensar que as coisas seguiriam determinado rumo. Mas não seguiram. Foram a pique numa viagem em direcção a um abismo distante. O tempo tem uma curiosidade doentia sobre os abismos mais longínquos. Preferia a sensação do tempo estancado. Agora quero ver como te arranjas, parece dizer-me o tempo rindo-se cruelmente na minha cara.

Ser abandonado dura um instante, perder o emprego é algo que se consegue sem esforço algum, perder os amigos não custa nada. Se pensarmos bem, rapidamente nos podemos situar nas margens da sociedade. Sobretudo não tendo motivação para mover um dedo, contrariando o avanço irredutível do tempo rumo ao vazio absoluto. O pior de viver na rua é a falta de silêncio. Mesmo de noite estão sempre a passar carros. Os fins-de-semana são um pesadelo. Uma noite levantei-me para ir encher de água uma garrafa e quando voltei tinha os cartões todos mijados por um bando de adolescentes bêbados. O meu colega disse que não pôde fazer nada. Os putos ainda o ameaçaram.

Mendigar é difícil, chamar a atenção das pessoas que passam é um jogo de sorte ou azar. Resolvi chamar a atenção das crianças e através delas conseguir umas moedas dos adultos. Dedico-me a fazer bolas de sabão perto de parques infantis. Uma vez aconteceu uma contrariedade que me deixou sem fala durante alguns dias. Uma bola de sabão, maior que as outras, vencendo a gravidade por mais segundos, rebentou. As bolas de sabão são como alguns sentimentos, imateriais, efémeros, que acabam por desaparecer como se nunca tivessem existido. A bola de sabão rebentou e o líquido salpicou os olhos de um miúdo que estava muito perto de mim dedicado a tocar com o dedo cada bola de sabão. O miúdo começou a chorar e a esfregar os olhos. A mãe alterou-se de imediato e disse-me que não devia usar um líquido que fizesse arder os olhos. Disse-me que alguém que se dedica a fazer bolas de sabão devia ter uma sensibilidade especial que eu, evidentemente, não apresentava. Que faria queixa à polícia municipal. As pessoas que estavam à volta voltaram costas levando as crianças pela mão. E eu continuei ali de pé com os dois paus que utilizo para fazer o molde das bolas, o balde a meus pés e a mancha de humidade no chão.

1 comentário:

  1. Muito bem e muito bom.Queremos ler mais, muito mais, porque quem tem imaginação e consegue navegar acima dos que se limitam a não ultrapassar os niveis da vulgaridade, têm por obrigação mostrar-lhes que existe algo mais do que aquilo que estes conseguem alcançar.

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