Repartição

Tenho alguns desejos de encontro. Disso não restam dúvidas. Normalmente estão relacionados com surpresas agradáveis. Por exemplo, se me desloco à repartição de finanças para resolver algum assunto espero encontrar um burocrata disposto a fazer-me sentir a pessoa mais deslocada do mundo, para não dizer praticamente marginal. O burocrata lança-me olhares desaprovadores como se estivesse a ponto de dizer “que cidadão tão alheio às obrigações e responsabilidades de contribuinte”. O burocrata acaba por ter pena de mim, o que é ainda mais desagradável. Uma mulher no atendimento tentaria logo alguma espécie de recriminação. Eu ouviria em silêncio e disponibilizaria todo o raciocínio que pudesse, evidentemente sem conjecturar a mais mínima mudança de atitude.

Podia adoptar uma postura arrogante e tentar insurgir-me; fazer notar a minha indignação (algo que a estes funcionários já deixou de afectar) e como os verdadeiros emigrantes começar a fazer comparações em voz alta. Ou mostrar através de uma atitude demasiado digna para ser natural, mas ao mesmo tempo descuidada, a matéria fina e culta de que sou feito, atormentado depois com as “normativas vigentes” de um Estado, mero acidente de percurso, infelizmente mais presente do que seria desejável. Mas não tenho jeito para ter razão; embora seja certo e merecedor de alguma burla que através do domínio preciso de um sem número de formulários e prazos, o funcionário consegue ter contratado a Sport TV e pagar, sem olhar a gastos, a conta da luz, único meio cultural indirecto de que usufrui. O burocrata que age conforme o estereótipo é só um pequeno verme que respira tédio. Mas os meus desejos de encontro – como disse no início – estão sempre relacionados com surpresas agradáveis – e para surpreender-me encontro sempre motivação. Imagino um funcionário, algo displicente, que está a ponto de receber alguma herança e que prefere relativizar um pouco o escalonamento do dever enquanto pensa nas remodelações magníficas que pode levar a cabo na casa de campo.