quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Reparação

José, proprietário de uma loja de reparação de bicicletas, fechou a loja às duas horas. Os dois empregados já tinham saído. Antes de colocar o cadeado olhou à volta: certificava-se que nenhum ciclista  se aproximava. Voltaria a abrir a loja às cinco horas. Morava perto e nunca almoçava fora. Guardava esse prazer para as noites de sexta-feira, quando se sentava no sofá esperando que a mulher estivesse pronta. Lia duas ou três páginas de algum dos livros que a mulher empilhava na mesa de centro. Vestia-se tal como ele gostava. Às vezes faziam amor mesmo antes de sair.

Chegou a casa e preparou algo de comer. Junto à máquina de lavar havia roupa no chão. Começou a virá-la do avesso e a colocá-la no tambor. Pensou que o aspecto externo da sua felicidade passava sempre por momentos de invulgares tomadas de consciência. Como quando se casou. Deu-se conta que realmente tinha uma vida a dois quando pela primeira vez que tirou a roupa da máquina e começaram a aparecer peças femininas, leves, brancas, coloridas, que só podiam ser lavadas em programas delicados ou que não enrugassem.

Lembrou-se de um serão com amigos, na adolescência. De quando dizia que a felicidade não lhe interessava. Interessava-lhe a experiência. Conseguir chegar ao ponto de ver a coisa na sua globalidade. Mas agora era realmente feliz e isso não o contrariava. As ambições mais inúteis secaram. Viajava. Enganava um ou outro cliente; só quando os clientes lhe pareciam más pessoas. Como dizia B. Traven, a única defesa que resta ao homem civilizado perante a perseguição generalizada da estupidez é mentir. Mentir muito. Mentir mal. Tinha um trabalho para o qual não havia limite de idade. Podia ser mecânico de bicicletas até aos 80 anos. Eram pequenas reparações, podia fazê-las. E tinha empregados. Nunca pensou chegar a ter empregados. Isso deixava-o feliz. Não os despediria nunca. Isso deixava-o ainda mais feliz. Tinha o poder de despedir pessoas mas não o faria. A imaginação não faltaria. Ocupava-se da comunicação com os clientes. Era um homem feliz. Trabalhava no ramo da locomoção mas não tinha que sujar as mãos de óleo. E deitava detergente líquido na lavadora americana e quando se deu conta a embalagem estava vazia e o cheiro a sulfatos inundava toda a casa.

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