quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O último grito

Finalmente Outubro. Cheguei à plaza Quevedo quando o sol só brilhava nos últimos andares dos edifícios. Morava num segundo andar e a janela do meu quarto já estava à sombra. Passava mais uma manifestação mas não tinha interesse em saber qual o motivo do protesto. Voltava a casa, depois de ter dormido doze horas. Sábado.

Estava muito bêbado. Ainda tentou que eu funcionasse. Sentou-se em cima de mim. Mas mal me deitei, adormeci instantaneamente. A casa dela ficava perto dos locais por onde saímos. Muitas horas mais tarde, despertei-me para ir à casa de banho. Tinha a boca seca, com sabor à palha que os asnos comem. Quando voltei à cama pensei se devia acordá-la, beijá-la até que abrisse os olhos e sorrisse. Mas não tinha certeza se me apetecia. E com tanta indecisão ocorreu-me que já achara a minha resposta. Reparei que, sob as pálpebras, os olhos se moviam muito rapidamente. Estaria a sonhar. Pensei de novo em beijá-la mas de modo a que não acordasse. Não queria interferir no seu sono de morta, mas intrometer-me nos seus sonhos, guiar as suas fantasias inconscientes, não deixava de me atrair. Os olhos, em movimentos circulares, agitavam-se em todas as direcções. Não corri o risco de acordá-la e ter que dizer alguma coisa. E afinal, é-me indiferente participar ou não dos sonhos de alguém. Dei-lhe um beijo no ombro e voltei a adormecer.

Mais tarde desci de elevador. O edifício tinha no rés-do-chão um pequeno jardim interior com algumas árvores e dois bancos de madeira. Ninguém usava o jardim e circulava um abaixo-assinado pelos condóminos no sentido de ser construída uma piscina naquele espaço. Na mesma rua vivia um conhecido meu, uma pessoa muito formal; que explicava o seu fracasso através do alto nível de exigência que colocava nos relacionamentos que naufragavam um após outro.    

Cheguei a casa e voltei a deitar-me. A sempiterna janela aberta. Lá em baixo a manifestação continuava. O ruído não me incomoda muito. As pessoas não vivem sem se fazer notar, esperneiam, e usam todo o tipo de ardis, mais ou menos engenhosos, para chamar a atenção. E hoje em dia parecem ter mais razão que em épocas anteriores. Vivemos agora. Julgamos sempre que somos o último grito. Só tinha na cama um lençol e não me queria levantar. Tapei-me o melhor que pude. Entrava pela janela um vento fresco; um sopro não mais poluído que as minhas intenções para os dias seguintes; uma brisa acabada de levantar das planícies áridas dos arredores e ainda não suficientemente fria para me obrigar a mudar a roupa da cama.

Sem comentários:

Enviar um comentário