segunda-feira, 25 de julho de 2011

Milagre

Sónia viúva chegou, como nos últimos dias, apoiada numa muleta. Entrou a tentas porque ainda não estava habituada a mover-se com amparo externo. Foi cumprimentada pelo livreiro, que agora também escrevia.

>> Adorei o teu conto, uma sensibilidade tremenda de que não te julgava capaz, não me interpretes mal; sim talvez pareças mais bruto no dia-a-dia; mas és um homem sujeito à pele e isso nota-se quando escreves. As palavras são o que te organiza. Esqueci-me que eras tu quem escrevia, sabes? Desapareceste por completo. Só ficou o conto. O narrador desapareceu. Ficou uma história num dado tempo e lugar com personagens que apanhamos a meio de algum episódio determinante. Personagens que persistem em ti, que começam em ti quando o livro é fechado. No começo é compreensível que a escrita se apoie em matéria autobiográfica. Mas tu consegues ser fiel ao teu mundo inventando um universo paralelo. E não sabes o que me aconteceu. Acabei o teu conto e levantava-me para fechar a janela. A muleta estava encostada ao braço do sofá mas não me ocorreu alcançá-la. Simplesmente queria caminhar até à janela com as minhas duas pernas, como antes, evidentemente só não caí redonda por milagre.

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