sábado, 9 de abril de 2011

Fogo

Hoje sonhei a noite toda com uma amiga de infância. Enquanto crianças víamo-nos muitas vezes, brincávamos juntos, tomávamos posse de ilhas, ou penínsulas, no curso do rio, e não abandonávamos o nosso território durante toda a tarde. Tardes bem passadas. Depois, como é tão comum, os caminhos separaram-se. Não voltei a vê-la. As pessoas parecem fazer sentido num momento e não mais fazerem num momento posterior. E segundo vejo encara-se o facto com naturalidade. Não considero nem deixo de considerar que seja natural; na verdade sinto um certo desdém por aquilo que se considera natural, que é valorizado pelo simples facto de não conter aditivos. Para mim o sabor é o que importa. Tanto melhor se tens um paladar refinado.

Levo-lhe poucos anos de diferença. Há umas semanas e através de conhecidos voltei a saber dela. Deu uma entrevista a uma revista feminina. Acompanhavam algumas fotos. É uma jovem advogada de sucesso e um exemplo de excelência para o mundo feminino. Não quero parecer um velho carrancudo – só tenho 28 anos – e alegro-me por ela, mas sinceramente para o diabo com a excelência de hoje em dia. Não li a entrevista porque me é indiferente a vida pessoal ou profissional seja de quem for. Mas depois daquele sonho é necessário admitir que inaugurei um trilho de desolação. E que percorri diligentemente, recolhendo todos os cacos, esse percurso de ruína.

Um longo sonho de engano. Estava sentado perto da lareira e ela entrava e saía da divisão. Eu vigiava o momento ideal. Sem que me ocorresse levantar-me do banco, esperava que ela entrasse e não mais saísse, reservando-me alguma atenção. Parecia confiar na chegada desse momento e não afastava os olhos do lume. Não me mexia, mas estava capaz de cortar um camião de lenha. Ela deambulava, falava com outras pessoas, figurantes no meu sonho. Eu olhava-a e ela olhava-me. Mas cada um estava ocupado com o seu mester. Assim era o sonho. Assim continuou até que despertei e constatei que assim mesmo me comportava, mirando o fogo, atiçando-o alguma vez, mas sem nunca chegar a chamuscar-me o mais mínimo que fosse. Ela também não passava de uma figurante. Eu próprio seria um personagem secundário no sonho de que era dono. O fogo queimava e a minha vida situava-se no plano estático de quem se aquece por casualidade.

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