quinta-feira, 28 de abril de 2011

Antes que me esqueça (1): Tirana

O destino da minha próxima viagem será provavelmente Tirana. Cada vez que vou a Lisboa, para além de visitar os sítios da minha infância e adolescência, arranjo sempre tempo, sozinho e secretamente, para conduzir nas ruas donde se erguem as maiores torres da periferia. Esses edifícios dos quais se diz que na totalidade vive mais gente que em determinadas aldeias do interior. Conseguindo demorar a incursão, entrando nos arredores, chego a estados de espíritos de grande significado interior, emoções só desencadeadas pelo contacto com as grandes obras de arte. Não é necessário falar com ninguém. Só assistir à maneira como o espaço foi dimensionado e como decorre incrivelmente a vida. Nessas ocasiões procuro colocar-me no tom certo e tento ouvir algum tema de Robbie Williams. São momentos de uma beleza extraordinária, que aprendi a usufruir de um modo genuíno, sem preconceitos, e que comparo ao contacto com as paisagens mais belas e cheias de história. Todos os momentos que realmente podem impulsionar algo de novo devem ser vividos em solitário. E no caso das periferias das grandes cidades não existe nada de verdadeiramente belo que se imponha de imediato, no sentido limitado e usual do conceito, e também não existe nada para partilhar. A beleza, a verdade e o crucial não podem ser uma experiencia colectiva.

Subi a uma dessas torres. Ao quinto ou ao sexto piso. Cheguei-me a uma janela e em relação ao parapeito onde estava via andares inferiores e andares superiores. Enormes blocos de cimento, com várias janelas abertas com a luz acesa, sombras, vozes em gritos, risos, cheiros, ruído de corda de roupa que deslizava. Senti-me como se estivesse numa plateia assistindo a uma peça de teatro algo surrealista, que persistindo mais de cinco minutos perderia a intensidade. Durando mais de dez minutos simplesmente perderia o interesse.

Existem lugares apartados do centro e relegados da publicidade, do espectáculo, do encanto, e do imaginário. Que fazer com esses lugares? Não tenciono ignorá-los.

Uma vez vi um documentário filmado na Índia onde centenas de pessoas, principalmente mulheres e crianças, esgravatavam em lixeiras. Os camiões despejavam toneladas de lixo e imediatamente as mulheres e as crianças punham mãos à obra recolhendo restos de comida e objectos de aproveitamento questionável. De imediato, senti uma enorme emoção que não se prendia com nenhuma espécie de compaixão pelo outro, ou pena, mas sim com a consciência de estar perante uma composição real de enorme beleza. Normalmente estas imagens são rapidamente seguidas de várias considerações de carácter social ou cultural.

Leio e oiço dizer que não vale a pena visitar a capital da Albânia. Para além de algum perigo relacionado com a criminalidade, carece de interesse por ser a capital mais feia da Europa, onde não se percebe nada, ausente de planificação, onde não existiu pensamento, ou onde, hoje mesmo, não existe pensamento. Quem sabe se em breve, muito em breve, não pisarei Tirana e no mesmo instante não começarei a demarcar novos territórios estéticos, muito particulares e de novo iniciáticos para mim, cavados do chão com inesquecível esforço, novas formas de olhar, como um adulto que se começa finalmente a surpreender.

É difícil libertar o olhar. E a verdade é que não fujo à regra no que diz respeito aos lugares públicos. A minha imagem para sempre podia ser qualquer coisa muito kitsch, como um cão a beber água de um ribeiro numa tarde de verão. Não quero de forma nenhuma que essa imagem se estabeleça. Não existe pretensão, nem um ermo onde, paradoxalmente, tenha tudo o que necessite.

Obviamente que sob o ponto de vista da mesa redonda não posso deixar de considerar certos fenómenos absolutamente lamentáveis, totalmente inaceitáveis ou tristes, em alguns casos revoltantes. Mas enquanto explorador do que existe, pouco parcial e sem dúvida o explorador mais lento que jamais viveu, após considerar certos fenómenos, “sem dúvida tristíssimos”, como se lê no conto Marés Negras de Bernard Quiriny, impossibilitado de chegar a alguma conclusão sob o ponto de vista moral e deixando para trás a consciência única, a boa consciência, o que sobra e está verdadeiramente ao meu alcance é tratar determinados casos sob o ponto de vista estético e nesse caso tentar descobrir que proveito posso tirar, o que fica entre mãos, que tipo de emoção é necessário deslindar.

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