terça-feira, 15 de março de 2011

Bicicleta

A melhor forma de chegar a falar com ela seria manter algum contacto visual anterior. Sabia que saía de manhã e regressava ao final do dia. Não fazia vida de bairro. Voltava a casa com as compras já feitas. Descia do autocarro com sacos de plástico e completava o trajecto entre a paragem e o prédio. Passados alguns instantes a janela do terceiro andar iluminava-se. E não havia mais rotina visível.

Não podia plantar-se frente ao prédio à espera que ela chegasse. Não todos os dias. Isso seria demasiado intrusivo. Ela podia começar a vê-lo como algum tipo de pessoa ociosa, desocupada, dedicado a vigiar quem passava. Proceder dessa maneira podia inclusivamente ser nefasto. Podia recear a sua presença e ter medo se algum dia chegasse a coragem para falar com ela.

Em definitivo: devia cruzar-se com ela com assiduidade mas evidenciando algum objectivo, uma coincidência de espaços devido a alguma conformidade de hábitos ou trajectos, fruto da ocorrência acidental de serem vizinhos. Como a necessidade aguça o engenho acabou por ter uma ideia magnífica. Usaria a bicicleta para dar voltas ao quarteirão. Tentou encontrar algum inconveniente e sob qualquer ponto de vista continuou a parecer-lhe uma ideia perfeita: alguém que tenta ganhar ou manter a forma física e que para isso completa um mesmo circuito perto de casa. Um circuito com ponto de passagem obrigatório no curto trajecto que ela efectuava entre a paragem do autocarro e a porta do prédio.

Foi até à arrecadação e comprovou o estado da bicicleta. Levantou o selim e rodou um dos pedais. A corrente estava um pouco dura. Necessitava lubrificá-la em vários pontos. As mudanças também precisavam de afinação. Testou os travões e achou que passar um pouco de lixa em cada calço seria suficiente. Notavam-se pontos de ferrugem nos cruzamentos de algumas peças. Mas isso era o menos. E obviamente os pneus necessitavam de ar. Como não tinha nenhuma bomba, levando a bicicleta cuidadosamente a seu lado, deslocou-se ao posto de combustível mais próximo e deu ar aos pneus. Voltou para casa montado na bicicleta e decidido a começar as saídas no dia seguinte, antes de anoitecer.

Durante algumas semanas cumpriu o circuito tal como se havia proposto. Com a melhoria da condição física começou a sair de casa mais cedo e conseguia dar mais voltas ao perímetro escolhido. O sucesso também se aplicava ao objectivo principal. Cruzava-se com ela todos os dias. Ela vinha pelo passeio e ele bem chegado à beira da estrada, como num voo rasante, braço com braço, quase se tocavam. Não sabia se havia sido por alguma deslocação paródica do vento mas uma vez, instantes antes do voo rasante, acreditou ver um sorriso na cara dela – na sua direcção, enquanto ele descia a rua. Assim era o tramo final antes de passar por ela. Uma curva e logo uma inclinação, uma descida que muitas vezes o obrigava a travar se não queria tomar demasiada velocidade. Muitas vezes pedalou ao entardecer. Por força, ela já lhe conhecia bem a cara. Mas de momento não planeava nada mais do que continuar com os voos rasos.

Durante semanas a rotina do entardecer repetiu-se sem novidades e sem sobressaltos. Até que um dia apareceu areia na estrada. Imediatamente a seguir à curva, quando a rua começava a descer. Provavelmente testemunho de algum movimento no solo, obras, alguma árvore intervencionada. O ciclista guinou o guiador ao mesmo tempo que travou quase a fundo. O pneu traseiro resvalou um pouco, a roda deixou uma marca em cima da areia, como se alguma serpente com a pele em escamas houvesse deslizado por ali momentos antes. O ciclista manteve o equilíbrio e num movimento que em câmara lenta admiraríamos pelo virtuosismo demonstrado conseguiu seguir com a pedalada firme. Logo após o incidente congratulou-se com o manejo da máquina sob o seu próprio peso, a fusão instantânea num corpo único que evitou a queda.

Intuiu que nada nele tinha vontade de se despenhar e foi por isso que conseguiu manter o equilíbrio. Outro movimento semelhante e podia estar já a ajudá-la com os malditos sacos de plástico. Segurando a porta enquanto dava uma última olhadela à bicicleta presa com cadeado a um dos candeeiros; que ainda não iluminavam o suficiente para se dispensarem os últimos raios de sol.

Sem comentários:

Enviar um comentário