domingo, 20 de fevereiro de 2011

Que há no frigorífico

Acordei com o barulho de uma rajada de vento a sacudir o lençol estendido. Pareceu-me um tiro. Abri os olhos e senti a minha cara pesada, só o rosto, como uma máscara de Veneza deformada, a minha cara esmagada contra a almofada. Sucederam-se múltiplas imagens da noite passada. Sentia-me incrivelmente, ao mesmo tempo bem e mal, e não me quis mexer.

A porta estava entreaberta. Cheguei a casa de X e havia um papel no frigorífico com estas frases. X fazia apontamentos sobre o quotidiano. Depois divertia-se lendo as próprias impressões. A nota estava presa com um íman, uma recordação de quando esteve em Brugge. Apaixonava-se sempre pelo último que conhecia. Por hábito, chegava a sua casa e o primeiro que fazia era dirigir-me ao frigorífico para ler o que estava apontado. Lembro-me de algumas. Por exemplo uma vez:

queres amar e queres continuar com as mãos limpas

Dessa vez abri a porta do frigorífico e tirei duas cervejas. Brindámos no ar com som de vidro e a seguir beijámo-nos, um beijo fraterno, de sangue, e rimo-nos encostados ao balcão da cozinha. Noutra ocasião, numa das notas mais curtas que tive oportunidade de ver, aparecia o seguinte:

paraíso
Ana, evidentemente

Há duas semanas que ninguém sabia de X. Em casa nada fazia pensar numa partida repentina. Estava tudo no sítio. A roupa alinhada no armário. A cozinha com algumas migalhas em cima da mesa. Embalagens com vegetais no frigorífico. Em cima do braço do sofá o último livro que comprara e do qual me havia falado tão entusiasticamente. O autor, um tal de Sherwood Anderson, de quem eu nunca tinha ouvido falar, sobre o qual X dizia que rebentava com Hemingway e colocava directamente ao lado de Salinger e Carver. Esse foi o primeiro sinal de que algo se passava. Não ter levado a leitura do momento. Isso e o facto, intrigante, de ter encontrado a porta entreaberta.
Comecei por falar com todos os amigos e conhecidos comuns. Tentei falar também com a rapariga com quem na altura X saía, uma tal O, mas ela respondeu com evasivas e finalmente mostrou-se demasiado ocupada. Cheguei ao final desta primeira tentativa de investigação, que me durou três dias, sem resultados. Voltei ao apartamento disposto a fazer uma busca mais aplicada. A porta continuava entreaberta. Precisava de uma pista que pudesse seguir. Como sempre dirigi-me ao frigorífico. O apontamento anterior já não estava. Nas costas de um papel amarfanhado e depois alisado, estava escrito:

não sei o que vai ser de mim, ou de quem quer que seja neste mundo

(...)

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