domingo, 9 de janeiro de 2011

Cadeia animal

Quando saiu do tribunal, de regresso ao escritório, estava de tal modo satisfeito que até esperou receber felicitações de estranhos. Não desperdiçou nenhuma superfície que pudesse devolver-lhe a imagem. Acabava de ganhar um processo com uma probabilidade de êxito muito reduzida.
O cliente que propôs levar o caso a julgamento rondava os 60 anos. Tinha um aspecto doente, ou melhor convalescente, o ar de quem acabava de recuperar de uma longa luta contra a doença, ou contra a agonia, em alguns ímpetos, ou em alguns gestos, imediatamente o esforço despendido parecia sentenciá-lo a perder mais dias de vida. Na primeira consulta a apresentação decorreu sem cerimónias.
>> Fui caçador durante muitos anos. Retiraram-me a licença porque dei um tiro à minha ex-mulher. Acertei-lhe na perna. Ela no julgamento defendeu que a minha intenção era assassiná-la. Posso jurar-lhe que o meu propósito não era esse. O meu alvo era a perna e acertei porque tenho boa pontaria. Não sou nenhum assassino. Não lhe vou explicar precisamente o porquê do disparo. Ela era bastante mais jovem e eu viajava com frequência. Também era um bocado doida. Estive preso 5 anos e meio. Obviamente eu não tinha antecedentes mas o juiz foi na conversa do homicídio na forma tentada agravado pela inexistência de disputa prévia. Perdi muito e o divórcio levou-me o que sobrou. Mas surgiu-me uma ideia que me pode permitir ganhar umas massas e aguentar-me uns tempos.
>> Agora vivo nos arredores. Já por três vezes na estrada que uso todos os dias, desde que começou a época de caça, tive acidentes com javalis. Tenho conhecimento de outros incidentes e prejuízos causados. A razão é simples. Foi criada uma colónia de coelho-bravo na serra. O objectivo foi fixar uma pequena alcateia de lobos, a primeira desde há 25 anos, e ao mesmo tempo mantê-la alimentada e afastada do homem e dos animais domésticos. Um dos problemas residiu na falta planeamento aquando da introdução da reserva de coelhos. Foram escolhidas zonas muito próximas de presença humana. O equilíbrio existente numa área de 40 quilómetros quadrados foi alterado com a introdução massiva de coelho-bravo. Os lobos começaram a descer a serra e os javalis, com menor sentido de orientação, foram empurrados para zonas urbanizadas. Ocorreram várias invasões recíprocas de território. A minha proposta é esta. Você é jovem, com legítima vontade de sucesso, um advogado brilhante. Da minha parte receberá todos os detalhes técnicos que necessita. Sou praticamente especialista em questões cinegéticas e agora tenho muito tempo. Da sua parte tem que conduzir da melhor maneira todos os dados que lhe vou fornecer e com base nas leis que existem, não vamos inovar nem inventar nada, construir uma argumentação sólida que não permita outras objecções para além das previstas.
Depois do julgamento, o processo finalmente ganho, o advogado dirigiu-se ao escritório onde já estava o caçador à espera. À chegada abraçaram-se. O advogado serviu um copo de champanhe e preparou um whiskey para o cliente. Brindaram só com o som dos copos. Depois sentaram-se à secretária, o caçador no lugar do entrevistado. Recordou que haviam passado mais de dois anos desde a primeira consulta e que só faltavam as últimas contas: Chegou a hora dos créditos finais. O caçador deslizou a mão no bolso interior do casaco e mostrou um revólver. O advogado fez menção de se levantar. O caçador disse: Muito bem, mantenha-se de pé e à minha vista. Não tenha medo, está tudo certo, ganhámos o processo. Ela era minha mulher e você não fazia ideia. Rompeu o relacionamento quando a soube no hospital. Conforme acaba de descobrir invadiu o meu território, entende? Já lhe expliquei que tenho boa pontaria. Não mexa a perna direita.