Quando saiu do tribunal, de regresso ao escritório, estava de tal modo satisfeito que até esperou receber felicitações de estranhos. Não desperdiçou nenhuma superfície que pudesse devolver-lhe a imagem. Acabava de ganhar um processo com uma probabilidade de êxito muito reduzida.
O cliente que propôs levar o caso a julgamento rondava os 60 anos. Tinha um aspecto doente, ou melhor convalescente, o ar de quem acabava de recuperar de uma longa luta contra a doença, ou contra a agonia, em alguns ímpetos, ou em alguns gestos, imediatamente o esforço despendido parecia sentenciá-lo a perder mais dias de vida. Na primeira consulta a apresentação decorreu sem cerimónias.
>> Fui caçador durante muitos anos. Retiraram-me a licença porque dei um tiro à minha ex-mulher. Acertei-lhe na perna. Ela no julgamento defendeu que a minha intenção era assassiná-la. Posso jurar-lhe que o meu propósito não era esse. O meu alvo era a perna e acertei porque tenho boa pontaria. Não sou nenhum assassino. Não lhe vou explicar precisamente o porquê do disparo. Ela era bastante mais jovem e eu viajava com frequência. Também era um bocado doida. Estive preso 5 anos e meio. Obviamente eu não tinha antecedentes mas o juiz foi na conversa do homicídio na forma tentada agravado pela inexistência de disputa prévia. Perdi muito e o divórcio levou-me o que sobrou. Mas surgiu-me uma ideia que me pode permitir ganhar umas massas e aguentar-me uns tempos.
>> Agora vivo nos arredores. Já por três vezes na estrada que uso todos os dias, desde que começou a época de caça, tive acidentes com javalis. Tenho conhecimento de outros incidentes e prejuízos causados. A razão é simples. Foi criada uma colónia de coelho-bravo na serra. O objectivo foi fixar uma pequena alcateia de lobos, a primeira desde há 25 anos, e ao mesmo tempo mantê-la alimentada e afastada do homem e dos animais domésticos. Um dos problemas residiu na falta planeamento aquando da introdução da reserva de coelhos. Foram escolhidas zonas muito próximas de presença humana. O equilíbrio existente numa área de 40 quilómetros quadrados foi alterado com a introdução massiva de coelho-bravo. Os lobos começaram a descer a serra e os javalis, com menor sentido de orientação, foram empurrados para zonas urbanizadas. Ocorreram várias invasões recíprocas de território. A minha proposta é esta. Você é jovem, com legítima vontade de sucesso, um advogado brilhante. Da minha parte receberá todos os detalhes técnicos que necessita. Sou praticamente especialista em questões cinegéticas e agora tenho muito tempo. Da sua parte tem que conduzir da melhor maneira todos os dados que lhe vou fornecer e com base nas leis que existem, não vamos inovar nem inventar nada, construir uma argumentação sólida que não permita outras objecções para além das previstas.
Depois do julgamento, o processo finalmente ganho, o advogado dirigiu-se ao escritório onde já estava o caçador à espera. À chegada abraçaram-se. O advogado serviu um copo de champanhe e preparou um whiskey para o cliente. Brindaram só com o som dos copos. Depois sentaram-se à secretária, o caçador no lugar do entrevistado. Recordou que haviam passado mais de dois anos desde a primeira consulta e que só faltavam as últimas contas: Chegou a hora dos créditos finais. O caçador deslizou a mão no bolso interior do casaco e mostrou um revólver. O advogado fez menção de se levantar. O caçador disse: Muito bem, mantenha-se de pé e à minha vista. Não tenha medo, está tudo certo, ganhámos o processo. Ela era minha mulher e você não fazia ideia. Rompeu o relacionamento quando a soube no hospital. Conforme acaba de descobrir invadiu o meu território, entende? Já lhe expliquei que tenho boa pontaria. Não mexa a perna direita.