domingo, 6 de setembro de 2009

Borboleta

Essa noite deitei-me inúmeras vezes e, de cada vez, fiquei o tempo necessário para perceber que não conseguia adormecer. Recostei-me perto do candeeiro. Também não conseguia concentrar-me em nenhuma leitura. Um insecto atraído pela luz estava na parede branca. A janela estava aberta mas não entrava frio suficiente. Devia ser já bastante tarde porque ouvi no corredor a minha vizinha, que era puta num bar perto, chegar a casa. Já não me fazia falta, já não me seduzia ouvir o som dos seus sapatos a bater no mármore. O som estava cada vez mais abafado. Ela devia usar sempre os mesmos sapatos, as capas estavam gastas. A distância até ao bar onde ela trabalhava era pequena, mas o chão não estava pavimentado. O «plan E» que Zapatero utilizou para fomentar o emprego na construção, através de arruamentos, parques infantis, zonas verdes, reabilitação de património municipal, saneamento, iluminação, retirada de símbolos franquistas, etc., fazia-se notar um pouco por todo lado mas não chegou à nossa rua. Só existiam três casas. Mesmo existindo muito dinheiro para investir convém ser racional. As capas da minha vizinha estavam gastas. Ela tinha gosto. Os sapatos dela não estavam polidos. Não brilhavam. Usava uns sapatos pretos clássicos.
Arrumei as camisas que tinhas nas costas das cadeiras e deitei, essa noite três vezes, água a ferver no lavatório. O dia foi em grande parte ocupado a ouvir a o jargão entediante de um geólogo despedido por cheirar mal. Acho que paguei com insónia a minha displicência no aproveitamento de mais um dia. Mas o geólogo tinha um dvd muito raro que precisava pedir-lhe emprestado. Não consigo dar por terminada uma conversa, mesmo quando é mais um monólogo que uma conversa. Uma vez, em Cáceres, só consegui adormecer quando vi o sol nascer na planície. Olhei para setentrião, como o tenente Drogo em O Deserto dos Tártaros, esperando que o exército inimigo saltasse de trás das rochas, e deu-me de imediato o sono. Os ataques inesperados são monótonos porque já sabemos que vamos morrer. Mas essa noite não tinha para onde olhar. Só para o pinheiro dos vizinhos que cresceu demasiado e que tirava grande parte da vista. Reparei que o insecto que estava perto do candeeiro estava agora na janela da cozinha. Toquei-lhe com um dedo e não voou, nem sequer se moveu. Toquei-lhe de novo e caiu ao chão. Talvez tenha usado demasiada força. Não sentia o meu corpo. E estava quase quase a amanhecer. Menos uma borboleta.

Sem comentários:

Enviar um comentário