segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Descascando a cebola

«Desconectei da minha rotina e isso, asseguro-te, é difícil». O meu maior objectivo é a queda. Devem estar para aí uns 19 graus mas estou cheio do velho calor de domingo à noite, uma febre doente. Acumulo muitos domingos de febre depois de ter vivido o fim-de-semana como calha. Não podemos ser todos iguais. Não se trata de uma vulgar falência de valores, embora os métodos sejam parecidos: o álcool, a vontade de dominar de uma forma frustre, a dança na cama que me ficou do João César. O meu corpo é um herói. As pernas doem-me, a cabeça mareada, o álcool no sangue, a boca seca de tantos beijos, de tantos beijos nas costas, uma pele magnífica, os pés ainda não me pertencem, continuam enroscados; um duche adiado para manter o exotismo e nenhum orgasmo, a noite, a tarde toda. Barthes dizia: «o meu corpo só existe para mim sob duas formas habituais: a enxaqueca e a sensualidade» e continuava: «o meu corpo é ligeiramente teatral para si mesmo». Não há muito porque se bater. O corpo é sempre a melhor matéria para o sonho. O corpo é que é o lugar da transgressão. Convém não ser libertino de todo para que o significado de «transgressão» possa ter aqui encaixe. Não sei se é o meu caso.

Durante o comunismo, na antiga RDA, alguém dizia que o verdadeiro curriculum vitae era o que constava nas «fichas policiais». Chegados a este ponto de «liberdade» acompanhada de tanto artifício, o verdadeiro curriculum vitae é a primeira mentira contada. Gunter Grass teve hipótese de errar estrepitosamente, enquanto jovem, e através dele percebe-se como as pessoas, depois de tantos anos e tanta história ainda não percebem absolutamente nada da massa de que são feitas. A forma mais rápida de acabar com alguém é esperar sempre o melhor. A tendência desgraçada para esperar sempre o melhor. Sempre a bondade. Obrigaram, fizeram de Gunter Grass um palhaço de Agosto. E Grass entristeceu-se. Existe uma diferença substancial entre o vulgar arrependimento e a tristeza. Claro, há muita gente com a capacidade assinalável de «sorver o ar do tempo» e fazer a coisa certa, prescindindo da nobre arte da experimentação. Posso defender o quê? Não quero defender o óbvio só para fugir à biografia desgraçada. O altruísta que se destaca por assumir «lutas». Na arte da experimentação Raskolnikov foi longe demais. Também queria saber se era um homem ou uma ratazana e, no processo, matou uma velhinha à machadada. Os inocentes são os que pagam pelos exageros dos homens, e às vezes das ratazanas que imaginam que são homens.

3 comentários:

  1. são camadas e camadas a descascar... Custa.

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  2. É assim a memória. Delicadamente doce, ou ferozmente azeda.

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  3. Ou uma mistura das duas. E é por isso que custa.

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