quarta-feira, 24 de junho de 2009

Música para camaleões (4)

Data: 23 de Maio de 1999


Cenário: Largo da Graça, Lisboa.



SF: Pode dar-me um autógrafo?


JCM: (é mais baixo que eu, veste uma gabardina preta, óculos de sol, tenta esquivar-se.) Não dou autógrafos.


SF: Uma recordação sua.


JCM: Não sou nenhuma ave rara, deixa-me passar.


SF: Está surpreendido por tê-lo reconhecido? Repare nesta mulher que passou. Julga que é um mendigo.


JCM: (afasta-se, atravessa a rua, enquanto se vira para mim.) Vou pedir esmola para outro lado.


SF: (alcanço-o no outro lado da rua, ao lado do Quartel.) Peço-lhe por favor, a seguir tenho aulas.


JCM: Não chegues atrasado, a sabedoria oficial é uma dádiva.


SF: De momento opto pela informal, é verdade que na Figueira da Foz levantava a saia às peixeiras?


JCM: Às peixeiras? O ensino não era misto. Passei os primeiros anos a espreitar, recusei a asneira de pensar que o doce mundo me podia suavizar.


SF: Isso não se faz, mas dizer «sim» é grácil…


JCM: Não rompi um único cu.


SF: Agora não sei, mas a Figueira dava uma ilusão de maturidade, a falta de calor misturada com o Casino, a facilidade com que se encontravam conhecidos, a meia dúzia de ruas que desembocavam no picadeiro. Um ambiente metade lúbrico e metade provinciano. E depois Londres, mas as primeiras impressões é que contam grande parte da história, a menos que se seja um aldrabão ou se almeje fugir do núcleo duro que nos formou, foi assim?


JCM: Vem, vamos ao miradouro. (Chegamos.) Olha que bonita a cidade, tanta luz.


SF: Tão branca que cega. Não me venha com essa. De certeza que prefere as sombras do jardim do Príncipe Real. Ou da praça das Flores. Alguma vez jogou à bola na rua?


JCM: Nunca vivi dentro de casa.


SF: Está sempre a desconversar.


JCM: Querias sermões?


SF: Queria aprender alguma coisa. Até a professora de português. Passa as aulas a contar histórias pessoais, ligeiramente patéticas e ligeiramente eróticas. Mas ela deve considerá-las agradáveis recordações de infância. Falta-lhe qualquer coisa.


JCM: Escreve-lhe cartas de amor, anónimas.


SF: Resolve alguma coisa?


JCM: É pândego. Não queiras salvar nada nem ninguém, perdes-te na tentativa.


SF: Sabe, provavelmente não terei hipótese conhecer ninguém tão nobre como o João.


JCM: E o menino a dar-lhe. Eu que gosto do arroz devidamente malandrinho.


SF: Bem sei. E o talho era na rua dos remédios, não era? Estou mesmo a vê-lo. A pedir sugestões às vendedoras da Rua de São Pedro. Moro lá perto. Quando era pequeno odiava o cheiro a peixe.


JCM: É por esse tipo de cuidados que agora já não deixam vender peixe na rua. Está cada vez mais difícil fazer filmes.


SF: Ninguém filma em Lisboa. Só anúncios.


JCM: (encolhe os ombros) São muito curtos e sem história. Prefiro o cabelo solto a um champô anti-caspa.


SF: E também prefere rituais. Ritual à mesa, ritual na cama, gosta de dançar? A oferenda do próprio corpo. Sabe o que mais me lixa? Que o vejam como uma curiosidade excêntrica. Que estejam tão fodidos que sejam incapazes de acreditar na insubmissão genuína. Em alguém que se atire à água mesmo não sabendo nadar. Merda de progressistas. Gostava que tivesse mesmo roubado dinheiro ao Estado para o empregar numa obra tão alheia ao poder e à normalização.


JCM: «Devo sofrear o riso ou atear a gargalhada?» Sou pouco monocórdico.


SF: (silêncio.)


JCM: (silêncio.)


SF: Sim, deixemos as formas clássicas do bom e do mau. Eu encontro harmonia nos rituais. Walser via harmonia em todo o lado e não precisava esforçar-se. Acho que sou influenciável.


JCM: A moral constrói-se no cimo de uma montanha de proibições.


SF: Walser não diria uma coisa dessas…


JCM: Dizes tu.


SF: Imagino-o numa tarde de calor Lisboeta, em casa, com as vozes da rua a chegarem à sala pela janela totalmente aberta. Isso poupa-o a ter que falar sozinho.


JCM: Andas a ver muitos filmes meus. Agradeço-te, por teres pago a entrada.


SF: Acredito que seja realmente inocente, para mal dos seus pecados. A sua fraca figura não está de acordo com a coragem que demonstra. É um homem muito bonito. Deixe-me acompanhá-lo até casa. Quero saber onde mora e quero ser-lhe útil. Não o deixo morrer; que a minha juventude tenha alguma utilidade.

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