quarta-feira, 13 de maio de 2009

Em busca dos posts perdidos (4)

Quando me lembro daquela noite não te quero ver em lado nenhum. Mas a memória atraiçoa-me e vejo-nos no caminho um do outro, os dois levantados de um jogo de verdade e mentira, num cais. Não sei se é forjada pela minha agitação mas é a neblina que te traz. Não gosto do teu corpo. A luz fraca ilumina-te. Concentro-me no teu rosto. Falamos com o movimento sincronizado dos corpos, estremeço quando nos aproximamos, atraídos cara a cara, boca a boca, é bom que a música não termine, ficarias envergonhada. Que instantes intermináveis. Fico com uma dor de costas horrível. Uma noite no cais, no porto de Buenos Aires, onde nunca fui mas juras que estivemos. A magia concertada pela tua beleza deveria fazer-me indiferente ao que me rodeia. Não é suficiente. Ao fogo do céu há que alimentá-lo continuamente. Já reparei num outro par de dançarinos. O rapaz teve mais sorte que eu.
O que separava o calor febril do teu afecto ameno foi o ar condicionado que teimavas em não querer comprar. «Poupa», pronunciavas. Nunca consegui plantar o jardim que merecias. A terra era pobre e tu eras contra os fertilizantes químicos. Não gostavas de vacas. Não arranjámos estrume. A soma dos dias não te fazia perder o essencial. Pedias um beijo, uma palavra doce, muitas notícias do coração, lembrar que te pertencia. Explodir o peito nas tuas mãos. Talvez um tiro na cabeça? À tua frente? Oferecer-te o meu sangue. Derramá-lo nesse teu modo imenso, que me fazia pequenino, embora fosse muito mais alto que tu. Um sonho no cais. Deixa-me dançar contigo mais uns tangos; para ficar cansado e adormecer mais depressa.
(2004, adaptado)

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